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14 Nov 2025

“As Meninas Exemplares” é uma recriação da obra da Condessa de Ségur, através da câmara de João Botelho. Foi com os livros da escritora russa do século XIX que o realizador aprendeu a ler:

Gostei muito de fazer o filme porque é uma ideia de inocência e, ao mesmo tempo, de perversidade. Um bocadinho mais ou menos de inocência, de regressar à infância. Lembro-me de que aprendi a ler com estes livros. Tinha três irmãs mais velhas e elas deram-me esses livros que havia lá em casa, a coleção azul, “Os Desastres de Sofia”, “As Meninas Exemplares”, “As Férias”…

A longa-metragem é um projeto antigo de João Botelho, que teve na origem a presença da artista plástica Paula Rego:

Há muitos anos, encontrei a Paula Rego em Veneza, estava a passar o “Quem És Tu?” e ela estava lá, tinha uma exposição, uma retrospetiva. Encontrámo-nos em São Marcos, falámos, e quando lhe contei que queria fazer isto, disse ‘eu faço tudo, faço os cenários, faço o guarda-roupa, faço tudo’.

Infelizmente, quando o projeto foi aprovado pelo ICA, a Paula já não estava entre nós.

Em “As Meninas Exemplares”, as crianças são interpretadas por adultos. O realizador seguiu as tendências da pintora Paula Rego:

Fiquei com a ideia de respeitar o conceito, porque as pinturas e os desenhos dela, também são de crianças velhas, são crianças-adultas, como diz a Ségur. É tão sofisticado, às vezes. Os diálogos, não podem ser crianças, são crianças mais crescidas. Mas os gestos são os da Paula Rego, são os gestos da Condessa de Ségur. Eles não falam como crianças, mas agem como crianças. As posições do corpo, o modo como se interrompem, o modo como falam, todas aquelas coisas são a Paula Rego, mas também a Condessa de Ségur.

Com “As Meninas Exemplares”, João Botelho pretende incentivar a leitura e fazer uma crítica à educação repressiva e autoritária. É intenção do cineasta andar pelo país e levar o filme às escolas e aos cineteatros:

Quero ir logo aos cineteatros, fazer serviço público. De manhã dou aulas aos miúdos, às escolas, falo-lhes do que é o cinema, e à noite aos pais. Não vou para as salas, nunca. Faço uma antestreia ali no LEFFEST, do Paulo Branco. Tenho agendado Bragança, Vila Real, depois Viseu, ir ao Minho, a Leiria, Coimbra. Tenho três semanas seguidas no Porto, no Batalha. Portanto, vou dar a volta a Portugal com este filme. Começo em Bragança e hei-de acabar na Madeira e nos Açores.

O filme ultrapassa barreiras artísticas. João Botelho orgulha-se da exposição de quadros e desenhos selecionados de Paula Rego que acompanha a digressão nacional do filme:

Uma curadora, Catarina Alfaro, faz a exposição aqui na Casa das Histórias e escolheu dez gravuras e quadros. Alguns são das meninas, outros são de outras histórias, de crianças e não sei o quê, mas algumas são das “Meninas Exemplares”.

As crianças dos contos infantis da Condessa de Ségur são representadas por atores adultos à imagem dos quadros de Paula Rego, o que dá uma dimensão humanista e realismo aos diálogos. Rita Durão, Crista Alfaiate, Joana Botelho e Catarina Wallenstein são “As Meninas Exemplares”.

Sofia, a menina rebelde e líder das tropelias, personagem dos livros, ganha expressão no ecrã com a atriz Rita Durão:

Os contos são muito ricos e falam desse período tão marcante que é a nossa infância e há coisas que se repetem e continuam a repetir até hoje, penso eu. Mesmo quem não tenha lido os contos, é capaz de reconhecer no filme uma energia muito ligada a esse período da infância, apesar de não sermos crianças.

A mãe de Sofia é interpretada por Ana Bustorff. A atriz foi reler o livro. É uma personagem que representa o amor maternal:

Digamos que esta mãe da Sofia aparece numa primeira parte de uma das histórias e é mais terna com ela, porque como realmente é a mãe dela, apesar de tudo ralhando com ela e sempre a chamá-la à atenção, tem uma humanidade e uma generosidade que depois a madrasta não tem.

Fui rever e vim outra vez ao Museu da Paula Rego e tivemos uns ensaios com o João, que também foi muito importante, para vermos o tom que ele cria entre nós, como nos haveríamos de comportar, qual era o universo do filme.

Madalena, uma das meninas exemplares, é a personagem de Catarina Wallenstein. A atriz realça que os contos infantis podem refletir falsos moralismos:

Isto é ultra bem pensado e articulado. E a memória ingénua que podemos ter através das gerações de que isto é uma literatura infantil e naïf, de naïf e de infantil não tem nada. Isto é a perversão no seu estado puro e a ideia de que nós, Europa, somos muito isto. Herdeiros de um moralismo, de uma falsa bondade, de um colonialismo na veia. Esta desculpa, ou esta forma de falar disso, através da dita literatura infantil é estupidamente inteligente da parte de João. É inacreditável.

O papel de Margarida, a mais nova das meninas exemplares, é de Joana Botelho, que olha para o filme como uma representação da vida, um espaço de sentimentos:

É quase como se fosse uma história também de aventuras e estão lá muitos sentimentos misturados. Não é preciso ser criança, mas está ali tudo. Está o amor, está a inveja. Nós temos, às vezes, com os nossos irmãos, ou com os primos, os nossos amigos, temos logo a competição, a chamada de atenção, mas depois muito amor, diversão e amizade. Não vejo como se fosse só uma bolha de crianças. Há mais coisas a acontecerem ali. É uma história muito bonita e melancólica, como a vida, também.

Cláudio da Silva tem o papel de Leão, o primo gabarola. Para o ator, o aparecimento dos primos marca o crescimento das personagens:

Aparecem depois de várias peripécias e vem finalmente a visita dos primos que marcam o momento de crescimento das meninas. Parece que passam para outra fase. Dão mais um passo para se tornarem adultas. E fez-me muito lembrar um livro de que gosto muito que é o “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust. Como consegue torcer e apanhar bem estes buracos na educação, esta falta de valores, este vazio, que depois apresenta consequências graves, muitas vezes, na nossa evolução enquanto sociedade.

Leonor Pinhão e João Botelho escreveram o argumento de “As Meninas Exemplares” que tem a participação especial de Rui Morrison e de Rita Blanco. Conta também no elenco com Margarida Marinho, Leonor Silveira, Dinis Gomes, João Estima e Vitória Guerra.

  • Margarida Vaz
  • 14 Nov 2025 18:53

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