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03 Jul 2025

“Contos do Esquecimento” é um documentário da realizadora Dulce Fernandes. Começou a ser escrito a partir de uma escavação arqueológica numa lixeira em Lagos, onde foram identificados 158 esqueletos depositados, presumivelmente, no final do século XV.

Em entrevista ao CINEMAX, a realizadora apresenta o filme que pode ser visto nos cinemas a partir desta semana e revisita factos de uma memória histórica.

“Contos do Esquecimento” é construído a partir de um achado arqueológico, o que pode ter colocado dificuldades na concretização da narrativa cinematográfica. Como foram sendo superadas essas dificuldades, seja de forma criativa ou prática?

Encontrar o território do filme foi um longo processo. Foi, sobretudo, construído na montagem, que durou muitos meses. Tínhamos os materiais filmados, outros identificados que queríamos incluir. Muito fortes, muito violentos, muito delicados de abordar, porque é uma história de enorme violência, de enorme brutalidade. Foi preciso encontrar um caminho para tratar este material e uma aproximação ao tema que fosse justa, digna e certa. Isso não foi fácil.

Gostava de perceber como surge a oportunidade de filmar o achado e também o envolvimento institucional.

Soube das escavações, penso que em 2013, não tenho bem a certeza do ano certo, mas penso que foi nessa altura. Nesse momento as escavações já tinham sido concluídas, elas foram feitas em 2009.

Portanto, quando cheguei ao local, em Lagos, no sul de Portugal, já existia um parque de estacionamento subterrâneo, com vários níveis, penso que já estava operacional, embora com pouco movimento, e estava a ser finalizado na superfície, no topo do parque, o campo de Minigolf, que ainda lá está hoje. Aproximei-me ao tema através dos arqueólogos e das antropólogas que tinham estado na escavação. Foi muito a partir desses depoimentos, desses materiais que me passaram, relativos à escavação, que comecei a investigação em relação àquele local em particular.

é relevante pensar sobre o meu lugar na história, no tempo e na estrutura do poder que foi criada ao longo destes séculos e que ainda reverbera

Em boa verdade é uma investigação. O filme acaba por ser uma escavação sobre uma escavação que não pode ser filmada e sobre uma descoberta que não pode ser verdadeiramente documentada do ponto de vista das imagens. É correto colocar a questão desta forma?

Havia imagens da escavação, fotografias que os arqueólogos tinham registado. E foi esse trabalho que fizemos, precisamente, de ir investigando essas várias camadas do que já tinha acontecido.

Depois, fiz essa investigação do que tinha sido feito ali em relação ao trabalho da arqueologia, aos achados e ao que tinha acontecido mais para trás, recuando até 1444, aquele momento em que localizo o início desta história.

Este filme permite também fazer uma viagem circular, surpreendente e muito pessoal, para alguém que nasceu em Angola e vive em Portugal?

Sim, acho que esta história faz parte da nossa história coletiva recente. Estamos a comemorar os 50 anos das independências. É uma história muito recente. Eu nasci num território colonizado. Os meus pais eram colonos, como muita gente da minha geração, mesmo no final desse império de 500 anos.

Portanto, há aqui este dado biográfico que para mim é relevante, para mim é relevante pensar sobre o meu lugar na história, no tempo e na estrutura do poder que foi criada ao longo destes séculos e que ainda reverbera, ainda está operativa no nosso presente.

O filme, de certa forma, pretende questionar também o pensamento atual sobre esta problemática. E rejeitar a negação coletiva e a construção histórica em torno do papel de Portugal. Propor um pensamento novo, ou diferente, sobre isso.

Acho que ainda temos muita dificuldade em olhar para o passado. Em encarar aquilo que foi feito, aquilo que aconteceu. De acordo com o Fanon, nós ainda estamos no primeiro dos cinco estádios de aproximação, que é a negação. Depois virá a culpa, a vergonha, o reconhecimento e a reparação, espero eu. Mas este primeiro estado é muito difícil de ultrapassar. Diria mesmo que estamos, em alguns aspetos, num estado de até menos um. Porque não temos só uma negação, temos uma narrativa alternativa, como se diz agora, uma narrativa fantasiosa, que tem sido muito difícil de superar. E eu acho que estou na procura dessa alternativa. Como podemos chegar a uma história contada de forma diferente, justa, verdadeira, em relação aos factos?

Foram traficadas seis milhões de pessoas em navios com o pavilhão de Portugal e depois do Brasil, ao longo de quatrocentos anos. É uma história, de facto, brutal, muito difícil de encarar. E por isso temos tido tanta dificuldade em olhá-la de frente, penso eu. Mas esse é o único caminho. O único caminho é olhar para a história. E, a partir daí, procurar uma forma de reparação.

Aquele lugar é de uma importância material e histórica, única, para além de simbólica

E do ponto de vista das reparações históricas? O debate que tem sido feito, no espaço público e do ponto de vista político, é interessante? É insuficiente?

Esse debate tem sido muito violento. E eu acho que essa violência é um sintoma da nossa negação coletiva, precisamente.

De parte a parte? Ou da nossa parte?

Não sei bem em que parte estamos. E acho que o pensamento binário, o pensamento de nos colocarmos uns contra os outros, pode não ser o bom caminho. Sem, com isto, querer dizer que seja possível negar os lugares de poder que ocupamos. Para mim, é muito importante que haja esse reconhecimento, até para mim própria.

Sou uma pessoa socialmente construída como uma pessoa branca. E, portanto, tenho os privilégios dessa construção, dessa branquitude, que não são atribuídos a pessoas consideradas não brancas. E isso é importante reconhecer. Não há aqui lados diferentes, é importante fazer esse caminho de não nos opormos uns aos outros, mas esse caminho também tem que passar por reconhecer que ocupamos lugares de poder diferentes. E o que isso significa para cada um de nós.

O debate sobre as reparações é um sintoma daquilo que é a nossa dificuldade coletiva. E eu penso que pode ser útil, pode ser produtivo, pensar que as reparações podem ocorrer a muitos níveis. Podem ser simbólicas, têm muitas expressões. Não é necessariamente retornar as peças dos museus, ou haver reparações financeiras. Isso também faz parte. Normalmente são essas que são apontadas como as mais polémicas e controversas. Mas quer dizer, eu acho que temos que começar a ensinar a história de forma diferente. Começar a assinalar o espaço público de uma forma diferente.

Em Portugal ainda não existe um memorial às vítimas da escravatura e do tráfico. Um projeto que, por exemplo, em Lisboa, está a aguardar desde 2017. Penso que é essa a data em que foi feita a proposta, num orçamento participativo. Esse projeto ganhou, existe um projeto de memorial, uma peça do artista angolano Kiluanji Kia Henda, e essa concretização nunca foi possível. Ainda foi no tempo do antigo presidente da Câmara, do Medina, depois neste presidente acho que pouco terá avançado.

Agora parece que há novamente algum avanço e retornou-se à localização inicial que tinha sido proposta na zona de Ribeira das Naus, em Lisboa.

Isso é uma forma de reparação. Assinalarmos no nosso espaço público este passado. E há muitas outras formas de fazer essa reparação. Tenho a humilde ambição de que o filme também possa contribuir para isso, que seja uma forma de reparação.

O filme diz-nos que neste local dos achados arqueológicos há uma placa informativa, sintética. Não sei se de uma forma justa adequada ou não, a Dulce poderá dizer algo sobre isso, mas o que vemos lá é um estacionamento subterrâneo e depois uma construção deste Portugal turistificado. Perdeu-se a oportunidade de reconhecer este problema, esta história portuguesa, de uma ou outra forma, naquele local?

Penso que está a ser feito um caminho de se ganhar essa oportunidade, porque há desenvolvimentos em relação àquele local. A placa que lá estava, que era a única coisa que assinalava aquele local como sítio onde tinham sido encontrados estes esqueletos, no meio de uma lixeira, essa placa já não existe. Foi retirada como consequência direta do filme.

E a placa não dizia apenas aquilo que está no filme, tinha um texto muito extenso que fazia referência à geologia do local, às ribeiras que ali passavam, a uma leprosaria. Depois, de forma muito displicente, mencionava os esqueletos e referia-se a eles de uma forma absolutamente ofensiva. Essa linguagem ofensiva foi retirada, não sei se já lá está uma placa nova, se vão por um texto modificado, não sei bem o que estão a fazer. A última informação que eu tenho é que ainda não estava lá nada de novo.

De qualquer forma, uma placa daquelas que mal se via não é de todo correspondente ao que aquele lugar significa. Aquele lugar é de uma importância material e histórica, única, para além de simbólica. Portanto, assinalar aquele local tem de ser feito de uma forma muito mais visível e espero que com uma monumentalidade, uma escala, uma visibilidade adequada àquilo que se encontrou e àquilo que aquele lugar significa na nossa história.

Seguramente, muito diferente daquilo que é hoje aquele local do ponto de vista arquitetónico. Poderia, enfim, poderia estar lá um poema, e terminando este nosso encontro, falando do local, da forma como se evoca, eu gostava aborda o poema que é lido no filme e nos diz algo que aquele local mostra e grita: “Os que morreram nunca partiram”.

Sim, é um poema do poeta, sengalês Birago Diop. Chama-se “Sopro”. Encontrei este poema, por acaso, não sei se já estava a montar, se ainda antes, e achei que o poema pertencia ao filme, porque ele fala, precisamente, dos mortos que nunca partiram, que estão em todo o lado, que não estão debaixo da terra.

Estes esqueletos apareceram cinco séculos depois, espero que também para nos dizer alguma coisa, para falar connosco, e o que nos podem dizer sobre nós próprios. Acho que essa é uma das propostas do filme. A Denise Viana, que é a voz do poema, grande amiga, companheira, atriz que acedeu a fazer este contributo para o filme, como uma espécie de homenagem fúnebre possível àquelas pessoas que foram ali encontradas.

  • tiago alves
  • 03 Jul 2025 11:26

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