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19 Set 2025

“Com a Alma na Mão, Caminha” é um documentário centrado em Fatma Hassouna, uma fotojornalista palestiniana que foi morta num bombardeamento israelita.

Tratada pela família por Fatem, era uma jovem de 24 anos, residente em Gaza. Com a sua máquina fotográfica captava imagens da destruição progressiva da cidade. A realizadora iraniana Sepideh Farsi conheceu-a através de um amigo, um refugiado palestiniano:

Quando a conheci tinha a idade da minha filha, portanto muito jovem, muito radiante, com um sorriso inesquecível, uma espécie de dignidade.

Ela é-me apresentada como fotógrafa e apresenta-se como tal e mostra-me logo as suas fotografias. Diz que é muito importante para ela documentar a ocupação israelita e o genocídio. Ela fala de genocídio, chama assim a ocupação militar israelita.

Sabe o que é a guerra desde os 9 anos. Cresceu, como muitos palestinianos, entre bombas e ataques. Nunca saiu de Gaza, é cheia de energia, de curiosidade, muito aberta. Queria viajar, dar a volta ao mundo, mas dizia,’ vou sempre voltar a Gaza porque a minha Gaza precisa de mim’.

Houve uma grande empatia entre as duas. Sepideh Farsi ligava a Fatma com frequência. Tinham longas conversas. A cineasta filmou essas videochamadas. A jovem palestiniana era os olhos da realizadora:

Filmei durante quase um ano. Tenho muitas horas de filmagens. Cada conversa durava uma hora, ou mais. Mesmo que não conversássemos todos os dias, havia várias conversas por semana. Depois foi preciso fazer escolhas.

O eixo principal, para mim, nas escolhas, foram os momentos em que havia informações importantes, mas também quando havia emoção. Ou seja, mostrar os momentos mais fortes, em que ela era mais expressiva. Pois havia momentos em que, apesar do que ela dizia, se via a magreza, os olhos um pouco ausentes.

Sentíamos algo, porque, na verdade, com o passar dos meses, os efeitos da guerra e da fome começaram a afetá-la física e psicologicamente.

Posso dizer que é um diário de viagem, mas também o que me deu muito foi a emoção nos momentos que gravei, para construir um arco narrativo que, através das nossas conversas, expressava a rotina dos palestinianos e de como sobreviviam.

Assinalei datas importantes com noticiários televisivos, como se fosse uma espécie de marcação histórica para contextualizar as nossas conversas.

Além das videochamadas, “Com a Alma na Mão, Caminha”, reúne fotografias e imagens de televisão. Sepideh Farsi escolheu para título do filme uma das frases ditas por Fatma, testemunhos da vivência em Gaza, onde é muito ténue a linha que separa a vida da morte:

Quando ela fala sobre as diferentes maneiras de morrer, diz que há várias opções para morrer em Gaza, bombas, fome ou medo. São declarações muito fortes e, de certa forma, muito naturais vindo dela.

E há outra frase que aguardei para o título do filme, ‘com a alma na mão, caminha’, porque eu, em determinado momento, perguntei-lhe o que significava para ela tirar fotos em Gaza. Ela disse que era como colocar o coração na mão e caminhar. Era isso que era tirar fotos, que era fotografar. Isso tocou-me muito e eu guardei esta frase.

Fez-me lembrar Fernando Pessoa. Eu lia muito Pessoa quando era estudante. Depois, quando estamos sob as bombas, os dias são difíceis de passar. Ela já nem se lembrava bem, disse-me. ‘Ah, sim, disse-te isso, mas foi há muito tempo’, mas não tinha sido, só que o tempo para ela era diferente. Cada dia era um calvário.

Sepideh Farsi, cineasta iraniana radicada em França, recorda o sorriso de felicidade de Fatma quando soube que o filme tinha sido selecionado para o Festival de Cannes. Falaram pela última vez a 15 de abril de 2025. No dia seguinte, um míssil atingiu o apartamento onde Fatma vivia com a família. A cineasta tem certeza da intencionalidade deste ataque:

No dia 15 de abril foi a nossa última conversa. Naquela manhã soube que o filme tinha sido selecionado para Cannes, para a secção Acid. Contei-lhe e ela ficou muito feliz. No dia seguinte, quando ia conversar com ela sobre a viagem, porque queria que ela fosse a Cannes e ela também queria ir, já não consegui contactá-la.

Durante a noite de terça para a quarta-feira, à uma da manhã, foi vítima de um ataque direcionado, como os ataques que houve contra muitos outros jornalistas palestinianos. Foi atingida em casa. Foi um ataque direcionado do exército israelita. Um ataque muito bem planeado, que eliminou Fatem e toda a sua família. Apenas a mãe sobreviveu, milagrosamente.

Não foram mísseis perdidos, ou uma bomba que caiu por acaso, não. Ela era realmente o alvo. Queriam mesmo eliminá-la.

A realizadora Sepideh Farsi. Foto: Lina Botero

Em “Com a Alma na Mão, Caminha”, a realizadora Sepideh Farsi denuncia o que realmente está a acontecer em Gaza. Fatma e a família são o rosto do genocídio:

Este filme é a minha resposta como cineasta e como mulher. Uma resposta a algo que, na minha opinião, é uma mancha negra na fase da humanidade e que tem de ser travado. Acho que o caso de Fatma personaliza, humaniza, dá um rosto a todos esses números.

Espero que tenha um efeito positivo. Tenho a impressão de que talvez seja uma porta que se abre para a nossa impotência. Às vezes tenho esse sentimento muito frustrante de grande impotência e pergunto-me, ‘o que podemos fazer?’

Tenho a impressão de que estamos aqui a assistir a um genocídio ao vivo e que não conseguimos fazer nada. É preciso sair desta letargia, agir, manifestar-nos, é preciso apresentar queixa contra o Estado de Israel, ou mesmo contra os nossos próprios países que não estão a fazer o que é necessário para impedir este genocídio.

É preciso quebrar a narrativa dominante que diz que Israel está a defender-se. O que está a acontecer em Gaza é intencional. Não é inevitável, pode não acontecer, pode ser evitado. É preciso encontrar a paz. É preciso um Estado da Palestina. É preciso escolher a paz. É preciso descrever o que está a acontecer com a palavra certa, encontrar os meios, os recursos para deter o genocídio.

Se evitarmos descrevê-lo com a palavra certa, nunca conseguiremos. É preciso sempre nomear as coisas. O mais importante neste momento é parar os massacres, fazer tudo o que pudermos cessar estes acontecimentos o mais rápido possível. Porque a cada hora que passa, há dezenas, mesmo centenas de palestinianos que morrem e crianças que são amputadas.

“Com a Alma na Mão, Caminha” é o testemunho real de uma jovem vítima do conflito israelo-palestiniano. Um documentário da realizadora iraniana Sepideh Farsi:

Espero que o público em Portugal veja este filme. É um verdadeiro encontro com ela. Depois de a conhecerem, nunca mais a vão esquecer.

  • Margarida Vaz
  • 19 Set 2025 10:40

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