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25 Set 2025

“O Céu em Queda” é uma longa-metragem de Carlos Ruiz Carmona, realizador de origem espanhola, a viver e a filmar em Portugal, concretamente no Porto. O cineasta apresentou ao Cinemax o filme que é basicamente uma representação poética da natureza do desejo, do amor e também da dor, que muitas vezes uma relação amorosa encerra.

Vamos começar pela viagem que fazes há cerca de 30 anos para o Porto. Porquê o Porto e como está a ser a tua experiência enquanto realizador em Portugal?

Vim para o Porto por causa de um crítico, José Vieira Marques, o fundador e diretor do Festival de Cinema Internacional de Figueira da Foz com quem tinha uma relação próxima. Era uma pessoa quem eu respeitava muito e gostava muito da sua visão do cinema, do cinema que ele programava e procurava, de que ele gostava.

E é por causa de um filme que apresentei em 1999, em Figueira da Foz, que foi muito bem recebido que foi assim que comecei a estabelecer contactos e comecei a ter uma relação muito próxima com Portugal. A vir, a conhecer muitas pessoas, e foi assim que foi acontecendo. Foi por causa do cinema que cheguei aqui a Portugal. Depois, apaixonei-me por uma mulher e deixei tudo, vivia em Londres e vim para cá, para Portugal.

Vale a pena partilhar que o Carlos é docente na Universidade Católica, no Porto. Portanto, para além do cinema que realiza e nos apresenta, o Carlos tem uma companhia de produção em Portugal. Tem sido uma boa aventura a produção e realização de cinema em Portugal, considerando que há uma dezena de filmes anteriores, sobretudo de caráter documental? Gostava de perceber como esse caminho está a ser feito.

É um caminho muito árduo. Antigamente fazíamos publicidade e outro tipo de trabalhos, de alguma forma mais comerciais, digamos assim, embora não seja uma palavra de que eu goste muito.

O que acontece é que quando fazes cinema independente, o seu financiamento depende do Instituto de Cinema Audiovisual, ou seja, é muito limitado, é um trabalho muito complexo, sempre um desafio muito grande, muito dependente do percurso em festivais, de como é aceite pelo mercado de cinema independente, que é um mercado muito próprio, que está muito oleado e que é muito competitivo hoje em dia. É uma máquina perfeita, digamos assim, e tu tens que jogar com essas regras.

Então, é um caminho difícil, mas, ao mesmo tempo, dá muita satisfação conseguir financiar, conseguir produzir o filme, conseguir exibí-lo. É complexo porque não há suficiente financiamento e suficiente aceitação do cinema português em geral no mercado internacional para se impor.

Este filme é uma ficção, é um registo diferente do cinema que o Carlos realiza. É também um desafio particular desse ponto de vista, “O Céu em Queda”?

É porque a ficção tem uma mais-valia que é ter atores e uma equipa por detrás de ti que tu orientas, enquanto o documentário é um diálogo. São diferentes, tens de mudar completamente o registo de trabalho, tens de trabalhar com um tempo muito limitado, tens de saber muito bem aquilo que queres, ou não vai correr muito bem, porque o tempo é sempre limitado, as equipas, os atores, é um registo de trabalho muito diferente com uma disciplina muito diferente.

O filme é uma proposta sobre uma relação amorosa bastante complexa, é um filme labiríntico. Diria que não é um filme deste tempo, podemos apresentá-lo assim?

Sim, sim.

Porque é que não é um filme deste tempo?

Esse é o motivo pelo qual este filme está em preto e branco. Muita gente pensa que é porque está baseado, ou influenciado pelo cinema clássico dos anos 20, 30 e 40, e é verdade. Mas um dos motivos pelo qual o filme está em preto e branco é para suspendê-lo temporalmente, ou seja, para que esteja num universo intemporal.

Embora tenhas referências a um passado, não consegues encaixar este filme num local. Isso, para mim, serve para transformar as personagens, não em personagens que pertencem a um tempo concreto, mas em arquétipos, em figuras de uma mitologia íntima.

Porque o filme está baseado numa história real, tivemos um trabalho muito aprofundado de conhecer as histórias de vida, das personagens mas, no fundo, não são personagens reais, são uma síntese de personagens e de histórias.

E o filme o que faz é uma reflexão sobre a representação do amor, tanto literária como cinematográfica, dessas tradições, e faz uma reflexão sobre essa representação de amor proibido, desse amor ideal. Por isso construí este imaginário. E daí há referências a um tempo, mas o tempo não é de todo concreto.

Gostaria de perceber se há alguma referência que podemos partilhar. Por causa da fotografia, do preto e branco dos anos 20 e 30, qual será a referência? Obviamente a referência, do ponto de vista estético, é muito evidente e também se enquadra nesse período, que é, obviamente, o expressionismo, eventualmente o expressionismo alemão.

Sim, sem dúvida. O expressionismo, porque o expressionismo tem um caráter de amplificar, de distorcer, de algum modo, a realidade.

Tal como no expressionismo alemão. Nomeadamente nos filmes com narrativas mais horríficas.

Exatamente, nos filmes de horror, podemos falar de Nosferatu, que é uma das grandes referências de sempre. Não é a mesma linguagem, mas essa forma de amplificar é algo que está muito presente no filme. Como eu amplifico aquilo que são os sentimentos, os gestos das personagens e o preto e o branco serve muito bem esse propósito. Como se consegue utilizar os altos brilhos e a escuridão para transformar e, por vezes, para distorcer, para amplificar.

Há muitas referências cinematográficas, muitas referências dos clássicos do cinema noir americano, que estão lá presentes e foram estudados até no modo como faziam a composição, como colocavam o homem relativamente à mulher, qual era o posicionamento dos planos e por que motivo. Porque é um amor construído, um amor muito idealizado pela câmara, aliás, até as próprias atrizes escolhiam o diretor de fotografia e de que lado queriam ser filmadas, era tudo muito, muito deliberado.

Nesse sentido, é um amor muito representado, muito figurado, que é obviamente o que se pretende com esta história de amor indo à ideia de um arquétipo. Portanto, é também um amor como já não se vê no cinema.

Exatamente. Porque a história de amor está inserida nesse contexto, nessas sombras do passado. É também numa tradição literária de Romeu e Julieta, Inês de Castro, todos esses amores impossíveis. Ou seja, dialoga com tudo isso, que não é como agora contamos narrativas.

O que é curioso e um dos motivos também por que fiz o filme é que, no entanto, toda essa traição que impõe o amor como sofrimento e que também, de alguma forma, alimenta a culpa, alimenta um modo de desejo, um modo de relações afetivas, um modo daquilo que é como deveríamos amar, ou como validar o amor, está presente e continua a estar influenciado e continua a ser uma herança de todos os clássicos.

É, de certa forma, uma história de amor eterno, aquela que é proposta em 2025 nesta narrativa profundamente clássica.  Já não há histórias de amor assim, grandes propostas narrativas românticas. Há algum tempo não vemos filmes que proponham histórias de amor intemporais. Quais são as referências?

As referências são muito vastas. “Casablanca” é incontornável, também o “The Big Sleep”, toda a cinematografia de Douglas Sirk está muito presente no modo como ele expõe a sociedade burguesa e o sufocamento social, assim como uma referência enorme para mim é Carl Dreyer e o modo como ele pensa o amor, como o torna um artifício declarado. Filmes como “Gertrud”, ou como “Joana d’Arc”, embora não diretamente e sobretudo “Day of Wrath”, é também um cinema que marcou muito todo o modo de encenar o filme, com toda a frontalidade dos gestos e a suspensão do real, que caracteriza muito a forma cinematográfica do filme.

E estamos perante uma representação que de certa forma é erotizada…

O filme tem um caráter erótico, tem cenas que são quentes.

O que também nos leva para aquilo que se filma, ou não se filma ao dia de hoje, porque cada vez se filma menos…

Exatamente, e também aqui está levantada a questão do que é proibido. O tema narrativo é o amor proibido. Então, algumas cenas podem ser são quentes sem ser, digamos assim, gráficas, no sentido de serem exploratórias? Explícitas, ou de explorar o corpo da mulher, como se diz, classicamente.

Gostava também de falar da presença dos atores, até que ponto é que eles entraram de corpo inteiro, ou discutiram opções, a questão da fotografia, como o Carlos dizia há pouco, as atrizes que querem ser dirigidas, fotografadas, de um determinado lado, de um determinado enquadramento. Essas questões foram discutidas, ou não, com os atores principais?

Sim, foram. Gosto muito de trabalhar com improvisação e tive a sorte de arranjar um espaço muito bom para trabalhar com eles. Tivemos oito ou nove dias a trabalhar em conjunto, os três, o Ruben, a Carla e eu, e tínhamos móveis, roupas, música, iluminação. Então, improvisamos o guião de muitas formas, brincámos com ele, e foi assim que construímos a relação, a relação de entrega, porque, claro, uma das coisas que mais me preocupava era fazer um filme com dois atores, e em cima tinha que ser algo muito íntimo, tinha que haver química.

Eles não se conheciam, o Ruben e a Carla. Então, o trabalho de improvisação, o trabalho de ensaios foi muito intenso, mas foi muito intenso também para não lermos o guião, foi tudo improvisado e trabalhado a partir da improvisação, inclusive os diálogos. Foram muito, muito trabalhados.

Depois, fizemos estudos, sim, mas isso fiz eu com o diretor de fotografia sobre os rostos e sobre o posicionamento, e aí tirámos fotografias e estudámos um bocado os lados dos rostos e como filmar. Isso foi feito do ponto de vista de direção de fotografias.

E o resultado é, eu diria, surpreendente. Foi satisfatório?

Foi fantástico. A Carla é uma atriz maravilhosa, não somente uma excelente atriz, como que tem uma energia muito boa para contaminar todos. É fácil trabalhar com ela e conseguir uma intimidade de compreensão e comunicação, depois cria um ambiente muito positivo, muito construtivo, que é contagiante.Tivemos uma conversa. Foi uma clarividência, uma forma de comunicação muito orgânica desde o início.

Podemos dizer, com todo o respeito pelos outros atores, que ela é a alma do filme?

Ela é a protagonista em si do filme, no sentido em que o filme, de alguma forma, tem uma vertente que se focae muito na representação da mulher no cinema clássico e em todo o que envolve e, nesse sentido, ela tem o protagonismo no filme.

  • tiago alves
  • 25 Set 2025 17:13

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