16 Mai 2024
Sem licença para filmar cenas de ação em Melbourne, o realizador George Miller virou-se para os espaços abertos da Austrália: foi assim que nasceu, em 1979, a aventura “Mad Max”, um pouco “sem querer”.
No início, era um filme um pouco fora de mão: a história de um polícia (depois ex-polícia), num mundo pós-apocalítico, interpretado por um ator australiano então desconhecido, Mel Gibson, embriagado de vingança após o massacre da família por um bando de motociclistas.
“Estava a trabalhar como médico e ouvi a história de um polícia que vai ao local de um acidente de viação e descobre que o filho está morto: como se reage a isso? E foi assim que acabámos com ‘Mad Max'”, diz George Miller, de 79 anos, entrevistado no Festival de Cannes.
“Furiosa”, quinto filme da franquia de sucesso, foi apresentado em estreia mundial, fora de competição, com as estrelas Anya Taylor-Joy (“Dune II”) e Chris Hemsworth (“Thor”) no elenco e na escadaria de acesso ao palácio do festival.
“Inicialmente (em 1979), queríamos filmar em Melbourne, mas o orçamento era baixo e não tínhamos os meios ou a autorização para filmar as cenas de ação e as acrobacias na cidade”, diz o realizador. “Por isso, fomos para os arredores e tivemos a ideia de dizer que era um futuro próximo, de criar esta distopia, uma bela decisão que surge de um constrangimento, daí nasceu este mundo”.
“O filme teve uma excelente receção – excepto nos EUA. Apercebemo-nos de que, um pouco inadvertidamente, tínhamos criado arquétipos, e foi aí que a aventura começou”, explica o afável artista. “Em ‘Mad Max II’ (1981), estávamos mais conscientes, sabíamos que tínhamos criado um universo muito coerente”, sorri. “Estes arquétipos são os do western: o vingador solitário, bandos de fora da lei, terras hostis. Aqui, a corrida ao ouro transforma-se numa luta pelo petróleo, o combustível dos bólides“.
Na Austrália, é preciso gerir cuidadosamente a gasolina nas longas viagens para o centro desértico do país, para evitar ficar sem combustível longe de tudo e sob um sol abrasador. Por isso, “Mad Max” é “tipicamente australiano” para George Miller, inspirado nas “pessoas que sobrevivem, simplesmente, no centro deste continente-ilha”.
Quanto à reação, as coisas mudaram muito nos Estados Unidos desde então. O quarto filme, “Estrada da Fúria” (2015), protagonizado por Charlize Theron e Tom Hardy, ganhou seis Óscares (em categorias técnicas que vão da maquilhagem ao som).
A montagem também foi premiada, uma assinatura destes filmes repletos de acrobacias motorizadas a um ritmo frenético. “O espectador tem de sentir o ritmo, a batida da ação coreografada”, diz Miller.
“Hitchcock dizia que tentava fazer filmes que pudessem ser vistos sem legendas no Japão. Eu sentia-me atraído por esta linguagem proveniente apenas do ecrã e também gosto do cinema mudo”. Os heróis e as heroínas são quase mudos em “Mad Max” e o Clint Eastwood também não falava muito no seu período de westerns.
Miller nunca imaginou o sucesso que estava para vir. “John Lennon costumava dizer que a vida acontece quando se planeia outra coisa”, filosofa.
No entanto, o cineasta tinha um bom pressentimento em relação a Mel Gibson. “sabia que era um bom ator, mas ele estava sempre no plateau, nunca no camarim, sempre a observar tudo, costumava dizer-lhe ‘um dia vais realizar um filme’, e aconteceu, até é um grande realizador”.
Mel Gibson entregou o volante da saga a Charlize Theron e depois a Anya Taylor-Joy. Mas continua a haver uma família Mad Max do outro lado da câmara. Guy Norris, duplo no segundo episódio em 1981, ainda hoje trabalha como realizador da segunda equipa. E os seus descendentes asseguram agora as acrobacias.
O feminismo motorizado de “Furiosa” faz-se ouvir em Cannes
Uma mulher beligerante que pulveriza um patriarcado bárbaro ao ritmo de uma ação frenética, em plena contestação #MeToo do cinema: “Furiosa”, o novo “Mad Max”, está na pole position dos blockbusters de verão.
Aos 79 anos, o realizador australiano George Miller continua a surpreender com a vitalidade desta quinta parte de uma saga pós-apocalíptica que começou em 1979 e teve a estreia mundial esta quarta-feira no 77.º Festival de Cannes.
“Furiosa” é o nome da heroína, que apareceu pela primeira vez na pele de Charlize Theron em Fury Road (2015). Agora chega na forma de uma prequela que mostra a juventude desta guerreira, dos 10 aos 26 anos. Equipada com um braço artificial mecânico substituto, escapou-se com as mulheres do harém de um déspota na obra anterior.
Alyla Browne (que também surgiu em “Três Mil Anos de Desejo”, do mesmo Miller) interpreta a criança raptada pelos renegados, enquanto Anya Taylor-Joy (vista recentemente em “Dune II”) interpreta a adulta que se torna intocável tanto ao volante como ao gatilho. Chris Hemsworth (“Thor”) diverte-se no papel do líder de um clã bárbaro com sotaque shakespeariano.
O elenco irrepreensível serve um cocktail hábil de filme de vingança, um género em si mesmo, uma distopia onde se abordam temas como a ecologia e o feminismo. Sem esquecer as cenas de acrobacias, com uma enxurrada de veículos retro-futuristas, máquinas geradoras de poder e morte.
“No início, precisava de uma história, o tema da fuga (“Estrada da Fúria”) poderia ter alimentado muitas coisas, mas se fosse um homem que tivesse libertado mulheres perseguidas num mundo mau por um tirano, teria sido uma história diferente”, explica George Miller.
“Mais tarde, surgiram estas ideias sobre uma guerreira, o lugar da mulher, o feminismo, mas no início pensava apenas na história que ia contar”, comenta o realizador.
No entanto, nota-se a evolução de Miller na escrita das suas personagens femininas. Em “Além da Cúpula do Trovão” (1985), o terceiro filme, a cantora Tina Turner interpretava uma líder de clã que governava uma cidade. No cartaz, com uma besta na mão, dominava o protagonista Mel Gibson. No original “Mad Max”, Joanne Samuel, a mulher de Mel Gibson no filme, era essencialmente uma vítima, combustível para a vingança do herói.
Em termos de forma, o ritmo alucinante de “Furiosa” faz lembrar o melhor episódio da saga, “Mad Max II” (1981). Miller também se cita a si próprio, ao revisitar o ataque a um camião-cisterna fortificado, uma alusão aos westerns em que a diligência é atacada por índios ou bandidos. “Costumo dizer que um filme deve ser visto com os ouvidos e ouvido com os olhos”, defende.
Uma “Furiosa” sem carta de condução
Anya Taylor-Joy, 28 anos, no deslumbrante papel principal, confessa no dossier de imprensa do filme: “Até hoje, ainda não tenho carta de condução”. “Sei derrapar com o travão de mão, mas não sei estacionar em paralelo nem conduzir na autoestrada”.
“Seduzida pela dimensão física do papel”, a atriz queria “fazer o máximo de acrobacias possível e o George encorajou-me muito”. Anya Taylor-Joy treinou um ano antes do início das filmagens ao lado da sua dupla. “Nunca me senti muito à vontade numa bicicleta, por isso, dar comigo numa mota de um dia para o outro foi um verdadeiro salto para o desconhecido”.
A mensagem ambiental de “Furiosa” – os recursos naturais cada vez mais escassos estão no centro das batalhas dos clãs, juntamente com o petróleo, neste mundo devastado – também a tocaram. E insiste: “é imperativo proteger o nosso planeta”.
“Furiosa: Uma Saga Mad Max” chega aos cinemas portugueses a 23 de maio.