15 Out 2024
Nas praias do interior do estado brasileiro de Alagoas, há uma menina chamada Sem Coração. A jovem pescadora tem uma cicatriz no peito e trabalha para ajudar o pai.
Os outros miúdos, adolescentes de classe média, aproveitam aquele lugar maravilhoso para passar as férias e mantêm uma certa distância.
A alcunha dá título à longa-metragem de Tião e de Nara Normande.
Começando pelo lugar, Nara. Estamos a falar de uma zona balnear, piscatória, no nordeste brasileiro. Qual a relação que tem, enquanto co-realizadora, com este lugar?
Eu moro em São Paulo, na cidade grande, mas sou de Alagoas. Nasci na praia mesmo. É um lugar muito especial para mim, das minhas memórias. Morei lá até aos 13 anos. Toda essa história vem muito inspirada pela minha infância, algumas personagens, a própria Tamara, que é a segunda protagonista. Então, a gente inspirou-se nesse lugar, nas histórias. É um lugar muito pulsante e a gente foi filmar lá.
De certa forma, a Nara é a Tamara. Podemos colocar a questão assim?
Acho que sim, tem bastante coisa da Tamara em mim. Porque eu também tive a minha descoberta, o meu interesse por mulheres.
A gente acabou filmando na minha própria casa, onde passei a infância. Então, tem bastante coisa. Não tudo, mas é bem inspirada na Nara adolescente.
A Tamara inspirada na tua vivência descobre a sexualidade, relaciona-se com um grupo de amigos, num lugar onde o tempo passa devagar, há muito pé descalço, muita praia, obviamente, muito peixe apanhado facilmente nas lagoas. Qual é a beleza desse lugar?
É um lugar muito paradisíaco mesmo. Vivi muito essa coisa de pescar, de brincar, de pé descalço, essa liberdade. Ao mesmo tempo, é um lugar muito complexo. Alagoas é um dos estados mais pobres do Brasil, com diversas complexidades sociais.
Então, no filme, a gente traz a Tamara com as descobertas, a Sem Coração, que pertencem a classes sociais diferentes, e esse grupo de amigos que vivem em realidades muito diferentes, às vezes muito chocantes, com muita violência.
No filme mostramos esses contrastes, essa exuberância com toda a natureza, os animais ali muito presentes, e esse contraste com a violência, com os problemas sociais, que é uma coisa que senti muito na minha infância.
O Tião também, ele é de Recife, que é ali ao lado, uma cidade grande, mas ele passava muito tempo as férias no interior do Piauí. Também viveu essa nostalgia de um lugar pequeno, com muitas violências. Isso é bem característico do Nordeste.
É um lugar a que regressa regularmente, onde gostaria de voltar e viver com outro tempo, agora numa fase adulta?
Pois é, o meu pai mora lá ainda, o meu irmão, com a minha sobrinha. Volto duas vezes ao ano, gostaria de voltar mais, mas o trabalho hoje em dia não me permite.
Não dá para ficar lá, porque não tem tanta oportunidade de trabalho. Moro em São Paulo, mas inspiro-me muito, as minhas histórias e tudo assim, vêm muito desse lugar.
Não sei se no futuro eu vou lá morar, quando acalmar um pouquinho, se estiver mais estável economicamente, mas por enquanto não me vejo morando lá, mas voltando com certeza, me inspirando e falando sobre.
Apresentando a personagem da Tamara, é uma miúda de classe média que se relaciona com a Sem Coração, cria um laço com esta miúda. E a Tamara está num lugar de mudança, isso é muito interessante no filme, porque ela está prestes a ir estudar para Brasília. Portanto, prestes a realizar a viagem que a Nara já fez?
Exatamente. Na verdade, com 13 anos saí de lá, mas não fui para uma cidade tão grande quanto São Paulo, fui para Recife, foi lá que conheci o Tião, mas já era um choque muito grande, uma cidade cheia de prédios e tal.
Era importante ter essa personagem que está se despedindo desse lugar, então ela começa a ver, a perceber os amigos, tudo ao redor dela de uma forma diferente, até consegue ter um certo distanciamento, porque está a sair, começa a entender também o privilégio que tem como menina branca de classe média. Tudo isso, enfim, é uma efervescência de sentimentos.
Era muito importante ter essa saída, uma pessoa que conhece muito o lugar, conhece muitos amigos, mas que está com esse pezinho fora. Aconteceu o mesmo comigo, essa consciência de várias coisas, consciência de classe, várias questões.
Há aqui uma vivência nessa idade, na adolescência, uma vivência em bando, que também reconhecemos nas nossas vidas, em lugares mais sossegados, de interior, de praia, também de um tempo português. Isso é deste tempo? Ou é algo mais passado, que já se perdeu? No filme, percebemos que se calhar aquela idade não acontece no presente, acontece nos anos 90, no início do século.
Sim, o filme passa-se em 96, e acho que ali tinha uma diferença grande, que era a ausência do telefone, do celular. Acho que hoje a infância e a adolescência estão muito pautadas por essa tecnologia. A gente perdeu um pouco disso, que consigo observar ao redor, acho que a gente perdeu muito dessa vivência em bando, mas claro que existe ainda, é uma coisa natural da adolescência, mas está mais desconectada entre si. Você vai num grupo, pode ir até para uma vila pesqueira e vejo a adolescência, estão na praia, mas cada um com o seu celular, sabe?
Falando de outra atividade, o que sucede neste lugar onde a pesca era um modo de vida e de sustento, ainda é assim hoje?
Mais ou menos, ainda existe o sustento, mas o turismo também chegou muito forte. Muitos pescadores que antigamente viviam da pesca preferem fazer um passeio de barco, porque é mais certo que você vai passear com os turistas e voltar com dinheiro, do que você sair para pescar e às vezes voltar sem peixe nenhum.
O pai da Sem Coração no filme é um pescador de verdade, ele tem essa realidade, fala muito sobre isso.
Em termos ambientais também mudou, está tudo mais construído, é uma invasão, quando tem paraísos como esses, as pessoas descobrem, começam a construir e rapidamente se perde.
Por isso, a gente quis fazer esse filme voltando a 96, para falar de um lugar que hoje não é assim também politicamente, porque na década de 90 a gente via muito as sementes do Brasil em que vivemos hoje, com toda essa divisão, esses extremos.
A gente traz personagens, como a do vizinho que, hoje, seria um cara que votaria em Bolsonaro, por exemplo.
Há um lado muito rico do ponto de vista da natureza com uma baleia que dá a costa, com raias, com algas também e obviamente com as lagoas, o areal e a presença do oceano atlântico. Esse lado é mais mágico no filme, o da infância, mas também o do território, como se à medida que o tempo passa e à medida que envelhecemos, perdêssemos essa capacidade de preservar os lugares na área. Posso colocar a questão assim?
A gente traz no filme esses elementos mágicos, porque é isso, é tudo tão mágico, ainda tem essa magia, está a diminuir, mas tem. Quando a gente estava a fazer a pesquisa do filme, apareceu uma baleia encalhada. São coisas que parecem fantásticas, a própria raia que passa, que traz um rasto de água azul que é o plâncton, isso existe também, só que é tão especial que parece mágico.
No filme quisemos brincar muito com isso. Como trazer os animais, que são muitos os que aparecem no filme, e conectá-los com o decorrer da história, com as emoções das personagens.
Antes de terminar, gostaria de saber um pouco mais sobre a personagem Sem Coração. Tem nome, obviamente, mas é chamada Sem Coração. E também perceber o que isso significa na cultura do lugar.
Vou-te contar uma história, a Sem Coração, quando morava lá, era uma menina que existia. Eu andava com um bando de meninos e comecei a escutar eles falando sobre uma sem coração, e descobri, aos poucos, um pouco da história do filme mesmo, que era uma menina que tinha um marca-passo no coração, filha de pescador. Esse foi o ponto inicial para o filme.
Ela tem uma força, uma potência enorme. Ela como mulher preta tem uma força muito maior do que qualquer pessoa ali, muito maior do que a Tamara.
A gente traz como um mito, que foi o que aconteceu comigo lá, quem é essa Sem Coração, e depois a gente vai descobrindo quem é essa menina, que apesar das dificuldades da vida, tem uma força que parece um pouco sobrenatural.
“Sem Coração” estreia nas salas de cinema portuguesas a 17 de outubro.