13 Nov 2024
Durante a pandemia, Jacques Audiard leu no romance “Écoute”, de Boris Razon, a história de um barão da droga que muda de sexo.
A ideia foi transportada para o México, onde a realidade e a dimensão dos crimes cometidos contra mulheres chamaram a atenção do realizador francês. Foi assim que desenvolveu a ideia para “Emilia Pérez”, um misto de thriller, filme de crime, com melodrama, convertido em musical, com rasgos de comédia:
Há algo que me choca muito no México, que são todas as mulheres que desaparecem e que são mortas, e há muitas regiões que não podemos visitar porque são muito perigosas. A queda da democracia é algo insuportável para mim. Por isso, decidi fazer uma comédia musical a partir de uma tragédia.
Manitas del Monte, um barão da droga, no México, quer deixar a vida de crime cumprindo uma vontade de sempre, transformando-se em mulher. Para tratar dos procedimentos em total segredo, contrata uma jovem advogada, cuja competência é sistematicamente apagada por um sistema machista.
Karla Sofía Gascón, atriz trans, é a figura central da história, o vilão que quer ver o seu plano concretizado e se transforma em Emilia Pérez. Zoe Saldaña é a advogada que, dentro ou fora da lei, segue as indicações do poderoso chefe do narcotráfico. Selina Gomes é a viúva do traficante que troca de sexo e Adriana Paz, a viúva de uma vítima do narcotráfico.
Completam o painel de quatro mulheres que saíram premiadas do Festival de Cannes pelo conjunto de interpretações. As personagens que desempenham são apanhadas por circunstâncias, mas decidem lutar, enfrentar e seguir em frente.
Elas são a visão de Jacques Audiard que o cinema torna possível. Emilia Pérez não pretende ser um retrato cultural, mas sim a dramatização de um imaginário:
Para mim este não é um filme de pesquisa como se faz num documentário. Em vez disso, é uma interpretação feita a partir da literatura, da música mexicanas e até mesmo do cinema mexicano. Acho que a imaginação tem a capacidade de expressar o que sentimos sobre as mais variadas coisas. Acho que é também um pouco político na visão sobre o México.
Comentei com os meus amigos que havia algo de muito esquizofrénico no México e que isso é muito tentador.
Karla Sofía Gascón sai do anonimato com o duplo papel de Manitas, narcotraficante, e Emilia Pérez, mulher que decide viver dentro da lei.
A atriz espanhola, primeira trans a vencer um prémio no Festival de Cannes, aproveita a visibilidade deste trabalho para sublinhar o que a personagem, Emilia Pérez, significa:
Acho que a maior mensagem que o filme passa sobre o México é que todos podemos mudar para melhor. E acho que a mensagem vale para o México, mas também para qualquer outro lugar. A ideia de que, por mais que tenhamos feito mal no passado, podemos sempre mudar.
O mais importante nesta personagem e no filme é que dá visibilidade à ideia de que nós, pessoas trans, não temos de ser trans, mas apenas pessoas. Não tem de haver etiquetas.
A atriz de 52 anos aceitou o desafio de Jacques Audiard para um papel arriscado, num desempenho que se desdobra em duas personagens, homem e mulher, na mesma história:
No início fizemos também um casting para escolher o ator do personagem Manitas e acabou por ser maravilhoso poder descobrir as duas personagens que são uma só, descobrir como evoluem e como acabam por se separar.
Para mim, foi um presente a personagem que o Jacques me deu. Poucos têm oportunidade de desempenhar alguém com estas características e não podia perder esta oportunidade de trabalhar de forma tão profunda.
Quatro atrizes com papéis relevantes reinventam-se sob a direção de Jacques Audiard que propõe uma narrativa pouco comum ao género musical.
“Emília Pérez” é uma espécie de opereta onde desfilam temas pop e rock cantados pelo elenco em coreografias que impõem ritmo sem perturbar a narrativa.
É um filme que aborda uma história coletiva de mulheres e do seu lugar, um filme que na vida de Jacques Audiard é, mais uma vez, uma forma de se sentir acompanhado:
Eu faço cinema, mas não o faço sozinho. Começa por ser um trabalho com um argumentista, depois vem toda a equipa com o elenco. É verdadeiramente um trabalho coletivo, é como dizem, a soma do todo é maior que as partes. Quando estamos juntos podemos trocar ideias.
É assim que vejo as coisas, se faço cinema é para poder encontrar pessoas, senão seria solitário e misantrópico.
Vencedor do Prémio do Júri, Emília Pérez é uma experiência de cinema sem paralelo, uma ousadia que voltou a chamar a atenção do Festival de Cannes, onde Jacques Audiard já foi premiado com “O Profeta”, em 2009, e “Dheepan” que, em 2015, venceu a Palma de Ouro.