09 Jan 2025
“Glória!”é um filme musical de época sobre a presença das mulheres no mundo da música clássica. Margherita Vicario escolheu o tema da música para se estrear na realização.
O filme parte a vontade da cineasta italiana dar visibilidade às mulheres cujas obras musicais ficaram esquecidas no passado:
Venho da música porque sou cantora e compositora. Certamente que o meu sonho era fazer um primeiro filme que fosse visceral, que falasse de algo que me diz respeito. A inspiração veio de uma parte minha mais íntima, quase autobiográfica, porque eu, tal como a protagonista do filme, sou autodidata. Nunca estudei música, mas tenho esta obsessão pela música. Por isso, gostei de desvendar um pouco os mecanismos da criação, de escrever uma canção, uma melodia.
Há um lado mais pessoal e um lado mais histórico, quase político, de chamar a atenção para o facto de, na história da música, ter havido muito poucas mulheres compositoras.
Se perguntar qual é a maior compositora da história da música clássica, o mundo inteiro teria dificuldade em dizer-me o nome. É claro que houve mulheres compositoras, mas tiveram muita dificuldade. Assim, peguei simplesmente num contexto histórico que me interessava e inventei uma história sobre este mecanismo de criação.
A realizadora ficou surpreendida ao perceber que, no século XVIII, as mulheres com acesso à formação musical de alto nível, ou eram da nobreza, ou eram jovens que viviam em orfanatos, e o trabalho nessa área era condicionado:
O que mais me impressionou foi ter descoberto que havia mulheres compositoras. Depois, lia os nomes das compositoras, mas nunca encontrava a música. Era como se não tivessem existido.
Ficar para a história é o mais importante para um artista. Só se fosse filha, irmã, ou mulher de um compositor, de um pintor, de um artista, então talvez tivesse um pouco mais de hipóteses de mostrar a música e fazer dela um trabalho.
Em “Gloria!” Margherita Vicario mostra o trabalho da única compositora órfã cuja obra sobreviveu até hoje:
No filme, apresento uma composição original de uma órfã que aparece numa cena do filme. O seu nome é Maddalena Laura Sirmen:
Eu toco para a personagem Lúcia, é como se uma das protagonistas fosse o alter-ego dela.
O facto é que encontrei a composição desta órfã porque o seu mestre de capela, na altura, se esforçou para que ela se casasse com um compositor. Portanto, só porque esta órfã casou com um compositor é que, em 2023, consegui encontrar esta música. Se não, só seria o nome. O destino apagou da história muitas mulheres artistas.
“Gloria!” é uma ficção, mas com rigor histórico. São verdadeiras, por exemplo, as referências ao fabricante piano Johann Andreas Stein e à eleição do Papa Pio VII em Veneza. Margherita Vicario descobriu também que o compositor António Vivaldi foi professor de música num orfanato:
O contexto histórico é real e bem documentado do ponto de vista filológico, no sentido em que existiam, de facto, estas instituições para órfãos onde eram todas mulheres. E descobri o envolvimento de Vivaldi. António Vivaldi era o padre compositor mais famoso, ou seja, mestre de capela.
Foi o mais famoso de uma destas instituições. Assim, o contexto é real, mas para os protagonistas tive uma certa liberdade. É como se tivesse escrito um conto de fadas, tendo como base um contexto documentado.
Veneza, no ano de 1800, o Instituto Santo Inácio, um orfanato, é o cenário de “Gloria!”. O filme acompanha o envolvimento com a música e um grupo de cinco mulheres, liderado por Teresa. A descoberta de um piano forte e a música composta para a visita do Papa vai revolucionar-lhes a vida.
A cineasta Margherita Vicario parte uma estrutura simples como num conto de fadas para retratar a complexidade que envolve a criação artística de mulheres que naquela época viviam como que aprisionadas pela condição feminina:
Tal como num conto de fadas, como num filme para adolescentes, trabalhei tentando ser muito pop. Por pop, quero dizer arquetípico.
Nestes arquétipos, temos estas cinco protagonistas. Formam um grupo onde há a mais cética, a mais cínica, a mais romântica, a mais ingénua. Depois há um vilão, que é este padre que tem de compor um concerto para a visita do Papa.
E foi realmente eleito o Papa Pio VII nesse ano, em Veneza.
É uma montagem um pouco simples, pois toda a atenção está centrada no lado criativo das raparigas, na criatividade oculta. Dou às protagonistas a música para tocar, a música que compus.
No fundo, é sobre criatividade, sobre o facto de termos perdido tantos talentos femininos ao longo dos séculos.
Apesar de ser um filme de época, há um cruzamento temporal entre a música moderna e a música clássica. A orquestra é real, formada por músicos profissionais.
As atrizes tiveram de aprender os gestos. Alguns temas musicais foram compostos por Margherita Vicario:
No filme, as mãos de Teresa a tocar são as minhas mãos, que faço do duplo da personagem.
Muitas das músicas fui eu que escrevi, mas também há muita música de repertório. Há a de Vivaldi, há o tema original da compositora do século XVIII. É uma mistura, uma espécie de curto-circuito temporal.
Por isso, há música moderna num contexto histórico. Depois, as atrizes tiveram de treinar durante três meses para fingirem que tocam numa orquestra.
No filme, há uma orquestra verdadeira formada por músicos profissionais. Bettina, uma das cinco mulheres, a personagem que canta no filme, na realidade, em Itália, é uma estrela pop muito famosa, chamada Veronica Lucchesi. Faz parte de um duo. Há também uma cena em que se ouve a minha voz.
A intenção não é ser um filme de intervenção política, mas “Glória!” é um filme feminista, admite Margherita Vicario:
É verdade que é um filme feminista, porque tem como protagonista as mulheres, artistas esquecidas e escondidas. Há todo o aspeto da fantasia feminina, mas também é verdade que é um filme feminista. É verdade que é um filme sobre o novo, sobre o que está a avançar.
Na época, o poder estava nas mãos, como continua hoje, nas mãos da igreja e da nobreza. O poder era representado pelos homens. E, neste aspeto, posso dizer que é um feminismo político, mas um feminismo muito doce, que nasce do desejo de mudar uma cultura e uma sociedade.
A realizadora italiana lamenta que o mundo profissional e artístico continue a ser de difícil acesso para as mulheres. As mulheres não têm uma vida facilitada, em particular num país como o meu, onde há uma mulher no governo que é quase de extrema-direita e, por isso, tem como valores principais a pátria, Deus e família.
Um filme como este, em que há uma reinvenção das raparigas do século XVIII, ainda fala às raparigas de hoje, porque, neste século, se olharmos para as tabelas do Spotify, continua a haver muito menos mulheres compositoras e escritoras de canções.
“Glória!”, estreia esta semana nos cinemas portugueses.