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17 Abr 2025

“Vermiglio” transporta-nos até 1944, para a aldeia remota e montanhosa nos Alpes italianos onde o professor Cesare vive com a sua numerosa família. A guerra distante fica mais próxima com a chegada de Pietro, um jovem soldado que desertou. O estranho interrompe o quotidiano da comunidade e reconfigura as relações familiares à medida que inicia um romance com a filha mais velha de Cesare.

Filmado com elegância pictórica, entre rotinas, gestos e silêncios, “Vermiglio” é um retrato apurado desta família e da sua comunidade.

A realizadora, Maura Delpero, associa o nascimento de “Vermiglio” a um momento que a marcou pouco após a morte do pai:

É um filme que nasce de um sonho que ocorreu pouco depois da morte do meu pai. Depois desse acontecimento triste, senti-me muito feliz ao vê-lo aparecer num sonho. Era o meu pai como nunca o tinha conhecido, porque era um rapaz de seis anos, que parecia muito feliz e que estava na casa da sua infância. Sorria-me desdentado, e levava debaixo do braço este filme: quatro estações na vida da sua grande família. Uma história de crianças e adultos, entre mortes e nascimentos, desilusões e renascimentos.

O pai de Maura cresceu, tal como toda a sua família, na pequena aldeia da região de Val di Sole, numa localidade que dá o título ao filme. Ao criar a ficção, a cineasta reflete este conhecimento da vivência das personagens, um “léxico familiar no limiar do inconsciente”:

Eram os anos da transição das guerras mundiais para o mundo atual, que foram precisamente um momento fulcral de grande mudança e que, creio, pode ser lida nos substratos do filme. Este sentimento de transição do coletivo para o individual, do campo para a cidade, que é um dos movimentos que o filme aborda.

Depois, também porque havia uma espécie de paradoxo na história central que me pareceu interessante, que é o facto de o mundo encontrar a paz no preciso momento em que a família a perde.

Portanto, havia uma série de questões que estavam relacionadas com o íntimo e com algo que eu conhecia profundamente e que sentia que podia servir para estruturar o argumento.

Esta pequena comunidade permitiu-me trabalhar como num estúdio, e permitiu-me trabalhar sobre a guerra mantendo-a fora do campo e contar como uma pequena comunidade – e também uma comunidade dentro da comunidade, neste caso a família – pode ser tocada por um acontecimento privado que, no entanto, se relaciona com um acontecimento público, que é a guerra.

Por isso, durante o filme há sempre uma espécie de dualidade, também visualmente – algo mais amplo que coexiste com algo mais íntimo.

O trabalho fotográfico consistiu em mostrar estas montanhas imponentes, com planos muito amplos, porque a montanha em si é um lugar que influencia muito a maneira de ser das pessoas, narra uma caraterística de uma comunidade.

Em “Vermiglio”, Maura Delpero retoma o olhar atento às dinâmicas femininas que a marcaram, algo que já foi notório do seu filme anterior “Maternal” (2020) sobre um grupo de mães adolescentes a viver num refúgio gerido por freiras. A realizadora assume a importância das mulheres no seu cinema:

Acho que tenho dentro de mim a minha mãe, a minha avó e todas as mulheres que me precederam.

No filme anterior, a certa altura deram-me um prémio importante, e disse: “Gostava que a minha avó me visse porque ficaria muito espantada, no sentido em que não compreenderia o que está a acontecer”. A minha avó, que é a mãe que se vê no filme, é uma mulher que deu à luz dez filhos ao longo de vinte anos e nunca saiu de uma cozinha.

Obviamente, ela está presente em mim, esteve presente na minha formação feminina, no meu nascimento e crescimento neste mundo em que vivemos.

Assim, de um certo ponto de vista, questiona-me tanto no meu interior como na minha posição na sociedade e no discurso mais alargado que pode ser feito sobre o feminino, a sub-representação, etc.

O ponto de vista das crianças é outra constante em “Vermiglio”. Maura Delpero justifica esta presença como uma forma de ser pragmática nos diálogos e de acrescentar vida, mesmo num contexto de tragédia:

As crianças são uma espécie de coro, como nas tragédias gregas, ou seja, são um comentário ao que está a acontecer.

De modo geral, a linguagem do filme trabalha sobre esta perspetiva do olhar, muitas vezes enquadramos alguém de quem estamos a falar. Isto porque nas grandes famílias é algo que acontece sempre. Há sempre alguém a falar de outro, somos indivíduos que integram um coletivo.

E gostei particularmente de dar o ponto de vista das crianças, que é sempre um ponto de vista universalmente interessante, porque nos remete para um olhar mais pascoliano do rapazinho, também um olhar irónico, que o dilui e que permitiu reforçar o tom do filme.

Leão de Prata do Grande Prémio do Júri no último Festival de Veneza, “Vermiglio” estreia esta semana nos cinemas portugueses.

  • CINEMAX - RTP
  • 17 Abr 2025 13:49

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