

A VIDA LUMINOSA: à descoberta do futuro
Entrevista ao realizador João Rosas, que, na sua primeira longa-metragem, "A Vida Luminosa", acompanha a entrada de um jovem na idade adulta, tendo como pano de fundo uma cidade em transformação.
“A Vida Luminosa” é a primeira longa-metragem de ficção do realizador João Rosas, um filme que cresce a partir de curtas-metragens realizadas anteriormente, filmadas em Lisboa e observando uma juventude em crescimento.
São filmes sobre transição de idade: “Entrecampos”, “Maria do Mar”, “Catavento”, curtas que foram sendo exibidas em festivais de cinema e também no CINEMAX.
O filme acaba por ser um lugar de encontros entre uma juventude que te acompanha no cinema em torno de uma personagem central, o Nicolau, que foi crescendo desde as curtas-metragens até este filme. Como é que ele chega a esta longa?
Conheço o Nicolau desde que tem 11 anos e, portanto, tem vindo a crescer também através dos filmes que tenho vindo a fazer com ele. E este filme acaba por ser um passo natural nesse crescimento, tanto dele enquanto personagem, do Francisco Melo enquanto ator e o meu crescimento enquanto realizador de cinema. Portanto, fazia sentido dar este passo e contar esta história com maior fôlego. O filme foi pensado, por um lado, na continuidade desse crescimento da personagem do Nicolau, mas também para ser visto de forma independente, ou seja, funciona para quem não viu as curtas anteriores. Mas, de facto, o ponto de partida acaba por ser essa ideia de transição, em particular nesta idade do protagonista que tem 23, ou 24 anos quando o filme começa.
No fundo é a idade em que muita gente começa a dar os primeiros passos para sair de casa dos pais, começar a trabalhar, começar um novo ciclo de relações, de amizades, ou de relações amorosas que vão, no fundo, ajudar a definir a formação da sua identidade. O ponto de partida do filme era esse: esta transição do momento em que deixamos de ser apenas estudantes, ou filhos a viver em casa dos pais. Como vamos construindo o nosso próprio caminho e como isso está muito ligado às amizades, ao amor e também a uma nova vivência da cidade.
É um filme onde há união com as três curtas-metragens, aspectos comuns que são, obviamente, negativos, geográficos, a cidade de Lisboa, o elenco. Também representa uma evolução no teu percurso, porque foi construída ao longo de muito tempo. Foi uma mudança relevante chegar a esta etapa e concluir uma longa metragem?
Foi um processo que acabou por ser natural no seguimento dos trabalhos anteriores, ou seja, o que me deu esta possibilidade foi, no fundo, ter mais meios de produção e mais tempo. Porque esse é um dos grandes luxos do cinema, comprar tempo, ter tempo, de facto, para preparar o filme na cidade. Isso para mim é muito importante.
Por um lado, como dizias, é um filme que dá continuidade a uma certa geografia de Lisboa, uma cartografia sentimental ligada a certos lugares da minha cidade e construída depois a partir do encontro com as pessoas que vão interpretar as personagens, que na sua maioria não são atores, são pessoas encontradas na cidade, e de que forma essas pessoas trazem também a sua cidade para o filme.
No fundo, o filme tenta construir essa cartografia sentimental e esta cidade em comum entre mim e esta geração 20 anos mais nova do que eu. O filme foi também uma desculpa para descobrir essa cidade.
Partindo de “Entrecampos”, a primeira curta, de 2012, como acompanhas, a mudança da cidade, como a sentes, habitando-a e filmando-a?
As mudanças na cidade são abissais. Lisboa sofreu um processo muito forte não só de gentrificação, mas também uma crise da habitação que toda a gente pode seguir e está na ordem do dia com razão para isso.
Num filme anterior, “A Morte de uma Cidade”, que era um documentário filmado no estaleiro de uma obra, tentava precisamente usar o cinema para pensar esses fenómenos a partir desse quotidiano dos trabalhadores e como essas mudanças eram sentidas por quem vivia em Lisboa. Neste caso, interessou-me descobrir como essas mudanças também vieram alterar a população de certa geração, ou de certos bairros.
“A Vida Luminosa” também foi um ponto de partida para descobrir esses novos imigrantes, ou esses novos lisboetas, esta geração de jovens que vieram trabalhar, estudar, ou simplesmente à procura da sua identidade em Lisboa.
A longa-metragem deu-me a possibilidade de partir à descoberta dessas pessoas num longo processo de casting e, no fundo, construir este coro, este conjunto de personagens que gravita em torno do Nicolau e que vão, como disse, influenciando o rumo que ele vai seguir.
Referiste esse documentário que é, obviamente, do ponto de vista da proposta cinematográfico, um desvio neste percurso. Depois avanças para a longa-metragem, “A Vida Luminosa”, e para trás ficaram as outras curtas. Isso leva-te, através da ficção cinematográfica, em “A Vida Luminosa”, a declarar a morte de uma cidade? Não é isso que sentimos?
Pelo contrário. Acho que é um dos pontos de interesse e de que eu gosto no filme. Penso que é um filme imbuído dessa energia da juventude e de uma forma de viver a cidade, uma cidade de percursos, de encontros, de acasos.
O Nicolau, o protagonista, serve um de guia por esta descoberta dos novos espaços da cidade. Portanto, acho que o filme mostra um pouco o que aparecia no final de “A Morte de Uma Cidade”. Na verdade, o filme tinha esse título, mas acabava com a constatação de que as cidades não morrem, são camadas que se vão renovando.
O que é fascinante na vida urbana é precisamente esta possibilidade de encontro com o outro. Esses trabalhadores da construção civil que conheci em “A Morte de Uma Cidade” mostraram que a cidade não estava a morrer, pelo contrário, cada um tinha a sua cidade.
A longa-metragem, apesar de ser um registo muito diferente, parte também dessa aproximação ao outro, desta possibilidade de encontrar estes novos lisboetas. Portanto, eu acho que o filme, até pelo seu registo leve e ligeiramente cómico, tem essa energia da juventude e essa energia da cidade que está longe de morrer.
A cidade mudou tanto que, Nicolau, durante o processo de crescimento, em etapas e idades diferentes, transformou-se provavelmente demasiado. Sentiste isso? Sentiste a forma como o tempo passou pelos filmes? Enfim, quando ele chega à idade adulta, é uma cidade radicalmente diferente daquela que se lhe oferecia no início, na infância, na transição da infância para a adolescência?
Sim, em muitos aspetos é claramente e é uma característica destas pessoas que estão nos 20 e poucos anos, esta precariedade laboral e salarial ligada aos preços da habitação que levam a que seja muito mais difícil este grito do Ipiranga e dar este passo.
O filme também servia um bocadinho para imaginar um mundo em que isso seria mais fácil do que é. Interessava-me de facto mais do que pôr a tónica nessa crítica, ou nesse pensamento sobre os fenómenos que estão a afetar a cidade, neste filme em particular interessava-me que isso funcionasse como um empurrão narrativo, ou um catalisador que levasse à progressão da narrativa e ao movimento do personagem.
O filme, estreado em tempos que podemos classificar, sem exagero, como tenebrosos em termos políticos, é um filme luminoso também nesta capacidade que o cinema tem e que sempre me interessou como espectador de nos transportar para outro mundo, mas também de efabular a partir dele.
Nesse sentido, é um filme luminoso em que a vida do Nicolau é um pretexto para imaginar uma certa maneira de viver a cidade.
“A Vida Luminosa” é um filme de relações onde também se reflete a forma como acompanhas o grupo de atores que vão estando nas tuas narrativas. Permite-te entrar também no próprio filme. Que personagem é essa?
Se calhar, esta personagem acaba por ser um reflexo da influência que tiveram em mim os primeiros filmes do Nanni Moretti e os filmes mais antigos do Woody Allen. Enfim, tentar um trazer este registo de comédia existencial, ou comédia melancólica e, sobretudo, um registo irónico em que esta personagem que eu interpreto, de realizador perdido com as suas ideias, é no fundo auto-irónica e a gozar com o papel social os próprios realizadores projetam. A imagem do artista angustiado e muito centrado em si.
Tal como noutras personagens, interessava-me essa ironia, misturando-a com o realismo mais existencial nas personagens dos jovens.
O filme é construído em torno dessa mistura em que eu tento trazer a literatura, a música, o próprio cinema que são formas de expressão e maneiras de nos relacionarmos com o mundo centrais na minha vida, tentando colocá-las todas ao mesmo nível. Ou seja, que não seja uma coisa altamente intelectualizada, pelo contrário.
Também a personagem do crítico de cinema que fala só por citações em francês. Apesar de o livro que ele cita ser muito importante no meu percurso como realizador, ainda hoje o leio regularmente, tenho distância para ser irónico relativamente a essa figura do intelectual da cinemateca.
Em resumo, o filme também é uma maneira de olhar para isso de uma maneira cómica.
A vida não é para levar demasiado a sério, ou não nos devemos levar sempre tão a sério?
Sim, sobretudo a nós próprios. A vida é séria, mas acho que com este filme tentei recuperar também um bocadinho esse espírito.
Foi algo de que gostei muito, na estreia no Indie Lisboa, na sala grande do São Jorge que tem mais de 600 lugares e estava quase cheia. Foi, de facto, uma sessão de cinema antiga, com as pessoas a rir, havia aquela energia da sala de cinema que é também um espaço de comunhão e de partilha com esta massa de anónimos com quem vemos filmes. Senti esse lado luminoso que o cinema tem, este feixe de luz na sala escura que nos transporta durante uma hora e meia para outro universo.
No fundo, foi isso que tentei com este filme, que esta narrativa tocasse as pessoas e, apesar de ser um contexto lisboeta e socioeconómico muito específico da classe média jovem lisboeta, acho que toca em dilemas e emoções universais.