20 Abr 2024

“Delírio”, “perigo”, “beira do precipício”…

Do ator Ricardo Darin à pianista Martha Argerich, artistas e responsáveis culturais da Argentina, apoiados por uma série de homólogos no estrangeiro, fazem soar o alarme para uma cultura que o governo ultraliberal de Milei pretende, na melhor das hipóteses, “auditar”.

Durante três meses, ninguém pode enviar projetos para o Instituto Nacional do Cinema e das Artes Audiovisuais: o INCAA, que financia cerca de dez filmes por ano, não vai avaliar absolutamente nada, decretou o administrador nomeado pelo Governo, enquanto estuda “novas normas de regulação da promoção audiovisual com vista a adaptar-se ao mundo atual”.

Os sectores da música, do livro e do cinema, em particular, acompanham com preocupação os gestos de “motosserra” que o Presidente utiliza desde há quatro meses para reduzir as despesas públicas a um “défice (orçamental) zero” e, finalmente, dominar a inflação patológica (288% ao ano).

“A indústria cinematográfica praticamente parou”, disse à AFP Paula Orlando, uma produtora independente que trabalha no sector há 12 anos e aguarda pagamento do INCAA. Está a considerar “deixar o país para trabalhar na indústria audiovisual, pois as perspetivas na Argentina são muito escassas”.

O golpe final esteve muito próximo em janeiro, com a Lei Omnibus, o enorme projeto legislativo que previa, entre outros atos, uma reforma total do INCAA e do seu financiamento. Também “liberalizava” o sector do livro, ao revogar uma lei que protegia os pequenos livreiros. O Parlamento acabou por rejeitar o projeto-lei e forçou uma nova versão que ainda está a ser preparada.

 

Cinema a troco de comida?

Mas o INCAA, com um orçamento de 12 milhões de dólares e reduzido de cerca de 700 para 550 funcionários, continua debaixo de fogo: um decreto recente prevê mais cortes, reduz as despesas de funcionamento, as subvenções às regiões, os apoios a festivais.

Estes cortes surgem num contexto de mensagens tóxicas entre Javier Milei e o mundo artístico. Tiradas ofensivas contra Lali Esposito, uma estrela pop latina “subsidiada” por cantar em festivais financiados nas províncias. Ou piadas sobre o “financiamento de filmes que ninguém vai ver (…) em vez de usar esse dinheiro para alimentar as pessoas”.

São argumentos que fazem levantar a cabeça de Ricardo Darin, figura de proa de um cinema argentino que é o mais premiado da América Latina, e onde se incluem dois Óscares de melhor filme internacional, com “A História Oficial” (1985) e “Aos Seus Olhos” (2009).

“Acreditar que as coisas horríveis que estão a acontecer no nosso país há décadas – a erosão da educação, do emprego formal, o número de pessoas que vivem na pobreza – têm alguma coisa a ver com (…) o sector artístico é ilusório. Muito simplesmente”, afirmou em março, na apresentação de uma longa-metragem que está a produzir.

A solidariedade dos artistas estrangeiros

Luis Sanjurjo, antigo Diretor de Cultura do anterior governo e titular da Cátedra de Políticas Culturais da Universidade de Buenos Aires, estima que a indústria cultural gera mais de 300 mil empregos oficiais. “A grande ilusão é pensar que o mercado se substitui ao Estado” em matéria de cultura, disse à AFP.

A isto junta-se um contexto de recessão, um poder de compra que se derrete sem parar, entre a inflação e a desvalorização brutal (50%) do peso em dezembro. Quando os custos obrigam a sacrifícios, a cultura é a primeira a desaparecer.

Uma semana antes da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires – onde Milei apresentará o seu 18.º livro -, o presidente da Câmara Argentina do Livro, Martin Gremmelspacher, declarou à AFP que, em fevereiro, tal como em janeiro, as vendas de livros diminuíram 30% relativamente ao ano passado.

No estrangeiro, estas inquietações fazem-se sentir: em janeiro, vários atores e realizadores (Kaurismaki, Almodóvar, Huppert) e, em março, a Sociedade dos Realizadores (franceses) falaram do cinema argentino “à beira do colapso”. E não há praticamente nenhum festival que não expresse “um pensamento sobre o cinema argentino”, como fez recentemente Thierry Frémaux, delegado geral do Festival de Cannes, ao apresentar a seleção de 2024.

No México, onde se prepara para receber o prémio Platino, que distingue o cinema ibero-americano, Cecilia Roth, a atriz argentina preferida de Almodóvar, lançou um “grito de socorro”.

“Estão a desmantelar tudo o que está ligado à cultura em geral e ao cinema em particular”, estabelecendo a ideia de que “somos parasitas do Estado”.

No início deste mês, reagindo à “suspensão”, oficialmente por razões de “transição administrativa”, das bolsas com o seu nome para jovens músicos, a pianista Martha Argerich, 82 anos, lembrou que ela própria, quando jovem, recebeu ajudas públicas que foram “fundamentais” para o seu desenvolvimento.

“Se o Estado não apoia nem contribui para a cultura, o futuro é verdadeiramente perigoso”.

  • CINEMAX - RTP c/ AFP
  • 20 Abr 2024 10:54

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