14 Set 2024

Cinco anos após ser homenageado com o Leão de Ouro pela carreira, o espanhol Pedro Almodóvar conquista o prémio máximo do Festival de Veneza. O filme “The Room Next Door”, o quarto do lado, foi consagrado como o melhor da edição 2024.

Na hora de agradecer, Almodóvar falou do tema delicado e polémico que quis explorar, o direito à escolha sobre o momento da morte:

“Poder despedir-se do mundo de forma limpa e digna acho que é um direito fundamental de todo o ser humano. Não é um assunto político, mas é humano e deve ser abordado através da humanidade. Por isso, os governos devem aprovar as leis adequadas para que possa ser assim.

Eu sei, este direito atenta contra as religiões e credos que têm Deus como única fonte de vida e, como tal, é também o único a poder terminar com ela. Peço aos praticantes de qualquer credo religioso que respeitem e não intervenham em decisões individuais a este respeito. O ser humano deve ser livre para viver e também para morrer quando está em sofrimento.”

A primeira longa-metragem de Pedro Almodóvar, falada integralmente em inglês, é interpretada pela norte-americana Julianne Moore e pela britânica Tilda Swinton.

No filme, as duas mulheres partilham o momento emocional e difícil de encarar a morte e confirmam que o talento ultrapassa a geografia dos países. Dirigidas pelo realizador espanhol, poderão estar em destaque na temporada de prémios que leva até aos Óscares.

Pedro Almodóvar tem uma carreira premiada em vários momentos, incluindo pela Academia de Cinema de Hollywood, nomeadamente enquanto argumentista, mas nunca um filme seu tinha conseguido chegar a um prémio máximo. Aconteceu agora com “The Room Next Door”, Leão de Ouro, no Festival de Veneza.

 

Os atores

Nicole Kidman e Harris Dickinson em “Babygirl”.

Uma mulher inteligente, profissionalmente bem-sucedida, mãe e mulher num retrato de família feliz, tem afinal desejos secretos que esconde, até ao dia em que se interessa por um jovem estagiário.

Nicole Kidman é o foco de todas as atenções de “Babygirl”, da realizadora holandesa Halina Reijn, um filme que entra na definição de thriller erótico para propor uma reflexão muito abrangente:

“É um filme sobre desejo, pensamentos íntimos, sobre segredos, casamento, verdade, poder, consentimento. É complicado responder-se sobre o que é a linguagem do sexo. Esta é a história de uma mulher e espero que seja uma história de libertação.”

Ousado e desafiador, “Babygirl” mostra sexo para falar de desejo, mas também de consentimento, ou de assédio.

Nicole Kidman nunca tinha estado com um filme em competição no Festival de Veneza, mas à primeira, a caminho dos 60 anos, levou para casa a Taça Volpi de melhor atriz.

Vincent Landon em “Jouer Avec Le Feu”.

Protagonista em “Jouer Avec Le Feu”, brincando com o fogo, Vincent Landon foi o vencedor da Taça Volpi masculina. O filme da dupla de irmãs Delphine e Muriel Coulin é um drama sobre a radicalização de um jovem e de como pode ser um elemento perturbador da vida familiar.

Vincent Landon, ator francês muito requisitado, é um pai operário da ferrovia que vê o filho mais velho aderir às causas da extrema-direita sem poder interferir:

“Gosto quando um tema é abordado de forma inteligente e bem escrito, com nuances, e sobretudo de um filme que não tenta impor um ponto de vista. Não gosto que os filmes tentem dizer o que está certo ou errado. É preciso respeitar o público e esperar que seja ele a decidir o que quer pensar. O que é interessante é que o pai, ao mesmo tempo, tem responsabilidades e não tem responsabilidades, porque os filhos são adultos e podem escolher o que querem fazer e o seu destino.”

“Jouer Avec Le Feu”, um dos filmes em destaque no Festival de Veneza, prémio de melhor ator para Vincent Landon, aborda a questão dos extremismos, um dos temas transversais na edição 2024 do Festival de Veneza.

 

Quatro filmes marcantes

Michael Keaton e Winona Ryder em “Beetlejuice Beetlejuice”.

Passaram mais de 30 anos desde que Tim Burton mostrou no cinema que os fantasmas podem ser muito divertidos. Beetlejuice está de volta, assim como Michael Keaton e Winona Ryder, com uma nova dose de puro entretenimento e humor negro.

Tim Burton não pensava voltar a esta história, mas os atores estavam disponíveis e o realizador acabou por aceder, por sentir que, desta forma, podia voltar a descobrir o prazer de fazer cinema:

“Nos últimos anos fiquei um pouco desiludido com a indústria do cinema, por isso pensei que se ia fazer qualquer coisa tinha de ser do coração, algo que queria mesmo fazer.”

Tim Burton garante que não tem intenção de pôr em marcha uma linha de montagem de sequelas para alimentar bilheteiras. “Beetlejuice”, diz o realizador, é outra coisa:

“Transformou-se em algo muito emocional, como um estranho filme de família. Não estou a fazer uma sequela para ganhar dinheiro, mas por razões pessoais.”

O regresso do fantasma Beetlejuice teve honras de abertura da edição 2024 do Festival de Veneza antes de chegar às salas de cinema para o reencontro com os fãs do primeiro filme e, quem sabe, para tentar conquistar plateias mais jovens.

Daniel Craig e Drew Starkey em “Queer”.

O novo filme de Luca Guadagnino, “Queer” é uma adaptação de um livro de William S. Burroughs passado na década de 50 entre artistas americanos exilados no México, refugiados em álcool, drogas e sexo. Guadagnino leu o livro na adolescência, mas esperou até agora para contar uma história que sugere questões:

“Queria que, no final, o público se interrogasse: quem somos quando estamos sozinhos, de quem estamos à procura, quem queremos ao nosso lado.”

Para surpresa do realizador, Daniel Craig aceitou interpretar um homem gay, viciado em cocaína e heroína, bem longe do registo de galã da personagem James Bond. Para o ator não havia outra resposta possível:

“Sei que se visse este filme e não fizesse parte dele, iria querer fazer parte.”

Angelina Jolie em “Maria”.

Outro momento muito aguardado do Festival de Veneza foi protagonizado por Angelina Jolie. Dirigida pelo mexicano Pablo Larraín no filme “Maria”, sobre os dias que antecederam a morte da cantora Maria Callas.

“Maria” completa a trilogia de Larraín em torno de figuras femininas marcantes do século passado: “Jackie”, sobre a mulher de Kennedy, “Spencer”, com os pensamentos da princesa Diana antes do divórcio e, agora, “Maria”, dramatizada por Angelina Jolie, que passou meses a treinar para dar voz à diva.

“O realizador foi muito simpático ao começar numa pequena sala para terminar no La Scala. Deu-me tempo para crescer, mas estava assustada. Honestamente, para mim, a medida para saber se fiz bem o papel são os fãs de Maria Callas. E aqueles que gostam de ópera. O meu medo é desapontá-los.”

O papel pode levar a atriz à nomeação aos Óscares da Academia.

Lady Gaga e Joaquin Phoenix em “Joker: Loucura a Dois”.

Outro nome que pode juntar-se à corrida é o de Lady Gaga, pela participação em “Joker: Loucura a Dois”. Depois da consagração, em 2019, com o Leão de Ouro, o universo do Joker, com assinatura de Todd Phillips, volta à Veneza, agora com Lady Gaga como co-protagonista na pele de Arlequim.

A sequela acompanha Arthur no momento em que será julgado em tribunal pelos crimes que cometeu, mas também pela opinião pública e pelos fãs que se inspiram na sua luta contra os poderosos.

As emoções da personagem revelam-se por meio de canções, incluídas ainda durante a escrita do argumento e depois interpretadas por Joaquin Phoenix e Lady Gaga:

“Não diria necessariamente que este filme é um musical. É muito diferente. A forma como a música é usada dá às personagens a possibilidade de expressarem aquilo que querem dizer porque os diálogos não chegam.”

Também Joaquin Phoenix sentiu a importância das canções:

“Senti que alguma coisa estava a acontecer na personagem, quando pegamos nestes clássicos e fizemos a nossa própria interpretação.”

“Joker: Loucura a Dois” é um musical diferente. Um filme conduzido pela voz de Lady Gaga que volta a mostrar como pode ocupar espaço no cinema e, quem sabe mesmo, ter uma história por sua conta.

 

Prémios de melhor argumento e realização

Selton Mello e Fernanda Torres em “Ainda Estou Aqui”.

Mais de 20 anos depois de “Abril Despedaçado”, o brasileiro Walter Salles regressa ao Festival de Veneza com “Ainda Estou Aqui”. O título podia ser também uma afirmação do cinema do Brasil nos palcos internacionais.

O filme é a história real de uma família que na década de 70 sofreu às mãos da ditadura no Brasil e viveu à espera da confirmação da morte do pai, o engenheiro e político Rubens Paiva.

A história desta família é também a história do país e é esse o foco do cinema de Walter Salles:

“Se olharem para ‘Central do Brasil’ e filmes que fiz anteriormente, de alguma forma o percurso das personagens cruza-se com o percurso do país. Isso é o que me interessa no cinema.”

O ressurgimento da extrema-direita que se multiplica por vários países e, no caso do Brasil, já passou pela presidência de Jair Bolsonaro, é um dos pontos de contacto do cinema com a realidade e, por isso, apesar de resgatar o passado, “Ainda Estou Aqui” é um filme sobre os muitos perigos que habitam o presente:

“O filme esteve em preparação durante sete anos. Nós começámos antes daquilo que aconteceu no Brasil e, no entanto, há uma convergência entre a nossa realidade política e aquilo que estávamos a contar. De alguma forma, comecei a achar que o filme já não falava do que aconteceu nos anos 70, mas era um eco do que estava a acontecer naquele momento e, quando vejo o que está a acontecer na Hungria e o que pode voltar a acontecer nos Estados Unidos e em tantos outros lugares, sinto a angústia dos tempos em que vivemos.”

“Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, com desempenhos de Fernanda Torres e da mãe, Fernanda Montenegro, venceu o Prémio de Melhor Argumento no Festival de Veneza.

Adrien Brody e Isaach De Bankolé em “The Brutalist”.

Na categoria de Melhor Realizador, Brady Corbet foi o contemplado com “The Brutalist”, que se manteve, até ao fim, como um dos favoritos a integrar a lista de premiados.

O filme conta a história de Laszlo Toth, na vida real, um geólogo que se tornou famoso por tentar destruir uma obra de Michelangelo em 1972. No cinema, um arquiteto judeu interpretado por Adrian Brody, que consegue fugir para os Estados Unidos e escapar ao holocausto.

”The Brutalist” é uma ficção sobre as consequências emocionais e não só da Segunda Guerra Mundial:

“Este filme, infelizmente, é uma fantasia, é uma história virtual, porque para mim é a única forma de aceder ao passado, porque quando começamos a escrever, tudo se transforma em ficção. O filme é dedicado a todos os artistas que não conseguiram sobreviver à guerra e realizar as suas visões.”

Uma ficção que parece uma biografia e que se estende por três horas e meia, “The Brutalist” desafiou as convenções e Brady Corbet ganhou a aposta, saiu de Veneza consagrado como o melhor realizador.

  • Lara Marques Pereira
  • 14 Set 2024 18:39

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