

“Camarada Cunhal”: a fuga de Peniche que mudou o rumo da história
O elenco de "Camarada Cunhal" e o autor do livro que inspirou o filme, falam sobre a importância da audaciosa fuga da prisão de Peniche que abalou o Estado Novo, redefiniu a luta clandestina do PCP e transformou a vida pessoal de Álvaro Cunhal.
“Camarada Cunhal” é o filme sobre um momento determinante da vida de Álvaro Cunhal, a fuga da prisão de Peniche.
A inspiração veio do livro “Álvaro Cunhal – Retrato Pessoal e Íntimo”, de Adelino Cunha, que reúne a vida pessoal e política do histórico dirigente do Partido Comunista Português.
O escritor elogia a escolha, um momento que mudou o rumo da história:
Foram muito felizes neste aspeto, optaram por um momento concreto que é muito importante, a fuga de Forte de Peniche.
O Álvaro Cunhal tinha sido preso pela terceira vez em 1949, no Luso, estava encarcerado há mais de uma década, com a perspetiva de nunca, ou de dificilmente, obter a liberdade, e o PCP tê-lo resgatado foi muito relevante porque recuperou também uma estratégia que o partido havia, de certa forma, suspendido.
E o Álvaro Cunhal, quando sai, sai para resgatar, no fundo, aquilo que é a raiz do PCP, a revolução popular armada.
Por outro lado, viu-se na contingência de ter de sair para o exílio, para a União Soviética. É a primeira vez, nos 100 anos de história do PCP, que o seu líder sai para o exílio na União Soviética, nunca tinha acontecido antes.
Há aqui uma série de momentos muito importantes que o livro retrata, e que o filme também vai buscar, e a própria vida feminina do Álvaro Cunhal.
Ele conhece a companheira exatamente na sequência desta fuga. Conhece a Isaura, tem uma filha, e vão juntos para a União Soviética.
Portanto, de um ponto de vista histórico, esta fuga não é apenas aquilo que muda no combate ao destino, aquilo que o próprio PCP também muda do ponto de vista interno, mas também o que muda no próprio Álvaro Cunhal, que tem, ao fim de muito tempo, uma vida familiar mais ou menos normal, no exílio, em Moscovo, com a companheira e com a filha dele.
Para escrever o livro, Adelino Cunha falou com familiares e amigos próximos do líder comunista. Leu também as obras publicadas de Álvaro Cunhal:
Neste esforço, que era, no fundo, considerar aquilo que é a história, o relato de história, tentei perceber o papel literário de Álvaro Cunhal e li as obras dele, até mais de uma vez. Em várias delas descobri histórias que eram da vida pessoal que ele, no fundo, usava na ficção para poder retratá-las. Se não tivesse falado com essas pessoas, com a filha dele, ou a companheira dele, nunca teria percebido que aquilo tinha uma mensagem subliminar.
Portanto, mesmo a literatura de Álvaro Cunhal, tem ali tanto de política e de vida pessoal dele, que é quase um exercício de descoberta. No fundo, não é que ele esteja escondido naquelas linhas todas, está tudo muito ali retratado.
Adelino Cunha, escritor e jornalista, foi consultor histórico do filme. Entre as cenas de “Camarada Cunhal”, realça o momento da fuga, em que se perde o manuscrito de “Até Amanhã, Camaradas”:
O filme não retrata o exílio, talvez outro filme possa fazer isso, retratar os anos do Cunhal no exílio, são anos também extraordinários, mas é interessante porque o filme acaba num momento importante, que é a fuga do Forte de Peniche. Há um momento em que cai para o chão um caderno, não sei se as pessoas ficaram atentas a esse pormenor, que acho muito delicioso.
Ou seja, o livro que cai do bolso do Cunhal é o caderno onde ele tinha o romance “Até Amanhã, Camaradas”, ainda com o título provisório, que ele deixa na fuga. Ele próprio, mais tarde, contaria isso. Foi preciso, depois, reconstituir aquilo que ele perdeu. No fundo, o livro conta a história toda e ficam, creio eu, pontas soltas no filme, que poderiam, eventualmente, aparecer numa sequela.
“Camarada Cunhal” recorda a detenção durante a ditadura, no Forte de Peniche, e a fuga de Álvaro Cunhal. Uma fuga célebre que abalou e pôs em causa a estrutura de segurança do Estado Novo.
O ator Romeu Vala tem o papel do histórico secretário-geral comunista:
Vamos encontrar um Álvaro Cunhal nos seus 50 anos, num período entre 1956 e 1960, à data quando estava preso em Peniche, já depois de ter estado bastante tempo preso, tanto no Aljube, como em Caxias.
Desta vez vai para Peniche, a prisão de alta segurança na altura, uma das prisões mais modernas da época e onde a repressão era brutal, as condições eram muito precárias.
Uma prisão em cima do mar, com muita humidade, poucas condições, fria, a comida era má. Diziam na altura que era chicharro de manhã, chicharro à noite, era sempre a mesma comida.
Vamos apanhar esse período em que elabora um plano de fuga, com camaradas que também estavam detidos e com o apoio de outros camaradas no exterior.
Elabora um plano bem-sucedido de fuga da prisão de Peniche, fuga essa que vem pôr em causa o regime de Salazar na época e que fragiliza o Estado Novo na altura.
Romeu Vala preparou-se para o papel, lendo muito, vendo vídeos e fotografias de Álvaro Cunhal e encontrou parecenças físicas:
Aquela imagem com os cabelos muito brancos e as sobrancelhas muito carregadas, é a imagem que guardamos de Álvaro Cunhal, porque o Estado Novo fazia questão de ocultar e abafar tudo o que eram informações sobre o Partido Comunista e Álvaro Cunhal em particular.
Quando arranquei com este projeto tive acesso a algumas fotografias, poucas, dele mais jovem, e fiquei surpreendido porque senti que há algumas parecenças físicas minhas com ele e isso também ajudou um bocadinho a fazer o papel.
Romeu Vala ficou sensibilizado com as cenas de tortura exercidas pela PIDE sobre os presos políticos:
Tocaram-me muito as cenas de tortura e de pancada que ele viveu e tocou-me muito também o lado em que ele dentro da prisão era dos que mais sofria e, ainda, assim, era dos que mais impulsionava e motivava os outros.
Essa força interior, essa garra e persistência na luta deve ter sido aquilo que mais me fascinou na construção da personagem.
Independentemente de ideologias e convicções políticas, para Romeu Vala é importante recordar, ou descobrir, quem foi Álvaro Cunhal, dirigente comunista preso pela PIDE, que viveu na clandestinidade e esteve exilado, um defensor da liberdade:
Não tinha tão presente na memória que ele tinha estado tanto tempo preso. Que tinha sofrido tanta tortura e isso foi aquilo que mais me chocou e que mais me fascinou nesta persistência, nesta luta. Sofreu muito, foi uma das maiores vítimas do Estado Novo, da PIDE, e nunca se vergou.
Apesar de sessões de tortura longuíssimas, de privação de sono, de condições precárias, independentemente de questões ideológicas, Álvaro foi uma das figuras cruciais e centrais na luta pela liberdade do povo português. E isso por si só tem um valor incalculável.
É nisso que eu me foco mais. A importância de termos 50 anos de democracia em Portugal advém de muita gente como Álvaro Cunhal que abdicou de si, abdicou da sua própria liberdade, em prol da liberdade de um povo. E temos que ser todos muito gratos a Álvaro Cunhal por isso.
Realizado por Sérgio Graciano, “Camarada Cunhal” mostra como foi concebido e executado o plano que permitiu a Álvaro Cunhal fugir da prisão de alta segurança de Peniche.
O plano incluía a fuga de outros presos políticos, elementos do Partido Comunista Português. Um deles era Joaquim Gomes, que teve uma parte ativa nesta fuga. O papel é do ator Frederico Barata:
Faço o personagem do Joaquim Gomes, que era um colega do Álvaro Cunhal, elemento do Partido, desde sempre, e que ajudou o Álvaro e todos os outros na fuga da prisão de Peniche.
Foi muito importante dentro daquele processo todo da fuga, porque foi aquele que conseguiu fazer uma ligação com o guarda da GNR. Fazer com que ele pudesse mudar um bocadinho as suas ideias, a sua ideologia, e que conseguisse, com dinheiro, ajudá-los em toda a fuga. Foi o papel principal que ele teve ali.
Para recriar as celas de Peniche, as filmagens foram feitas na prisão de Caxias, refere o ator Frederico Barata:
Filmámos na prisão de Caxias, porque a de Peniche estava em obras e, portanto, fizemos tudo em Caxias, como se fosse Peniche.
De certa forma, foi um desafio para nós, quem eram estes homens? Como eles se relacionavam? Qual era a maneira de eles estarem? Que prisão era aquela? Perceber aquela realidade.
São acontecimentos que eu acho que são muito importantes, que marcam e que, depois, podem ser abordados de forma também a perceber melhor a nossa história. Daí a importância de podermos abordar isto e transportá-lo para o cinema.

A fuga de Peniche contou com a colaboração de Jorge Alves, um guarda no interior da prisão, interpretado pelo ator Tiago Teotónio Pereira:
O guarda Jorge Alves foi quem os ajudou na fuga. Foi fundamental porque eles foram ajudados internamente. Começaram a ver fragilidades neste guarda que tinha muita empatia com eles, com as causas deles. E houve ali um momento em que decidiu ajudá-los.
Tudo muda na noite da fuga, em que ele, supostamente, ia ajudar 4 ou 5 e aparecem 10 ou 12. Aí ele teve ali o clique de que foi traído, que não era nada daquilo, depois ficou muito arrependido e acho que acabou por se matar.
Não vemos isso no filme, mas acho que foi por causa disso.
Era um guarda com bastantes problemas de álcool, com bastantes problemas de adições. Era bastante frágil e eles perceberam isso, usaram-no e conseguiram fugir.
Para Tiago Teotónio Pereira, o filme “Camarada Cunhal” conta um acontecimento da história desconhecido de muitos portugueses:
Para quem está minimamente a par da nossa história é óbvio que o Álvaro Cunhal é uma figura incontornável. Quem não conhece devia conhecer, acho que é obrigatório conhecer.
Também acho obrigatório saberem que houve uma fuga da prisão política de Peniche, tal como houve outra da prisão de Caxias.
A PIDE na altura tinha muita raiva destes presos políticos, eles eram odiados pelo regime e isso tudo tem influência e quem lá ficou sofreu muito mais porque estes conseguiram fugir. Não são as prisões que vemos hoje em dia, onde se fala muito de direitos e tudo. Era bastante mais agressivo, mais cru.
“Camarada Cunhal” está em exibição nas salas de cinema portuguesas.