23 Mai 2016 9:24
… E o realismo voltou a triunfar em Cannes. Um ano depois do triunfo de "Dheepan", de Jacques Audiard, sobre refugiados do Sri Lanka em França, o festival consagrou "I, Daniel Blake", de Ken Loach, uma crónica amarga sobre o esvaziamento humano da assistência social britânica.
A ironia é inevitável: um júri presidido por George Miller, figura obviamente associada à dimensão mais artificiosa do cinema (tinha estado em Cannes, em 2015, para apresentar "Mad Max: Estrada da Fúria"), consagrou uma velha e nobra figura do realismo britânico, obstinadamente fiel aos pressupostos de um cinema que não desistiu do real.
Importa lembrar que nada disto é esquemático, muito menos definitivo. O realismo não é coisa unificada, como o provam vários títulos que passaram por Cannes, desde a crónica familiar alemã "Toni Erdmann", de Maren Ade, até ao sublime "La Fille Inconnue", dos irmãos Dardenne, passando, claro, pelo contributo dos autores romenos (com "Bacalaureat" e "Sieranevada", respectivamente de Cristian Mungiu e Cristi Puiu).
Além do mais, como bem nos lembrou o americano Jim Jarmusch, o realismo pode andar de mãos dadas com o mais insólito apelo poético: o seu "Paterson", protagonizado por Adam Driver, consegue a proeza de encenar o dia a dia de um motorista de autocarro como uma demanda exigente (poética, precisamente) de uma outra linguagem para lidar com a vida vivida.
O realismo pode mesmo coexistir com (e, num certo sentido, atrair) as mais inusitadas variações de linguagem, mostrando como a procura do real não é um efeito automático das técnicas específicas do cinema, antes uma vontade criativa que põe em crise as certezas da própria linguagem cinematográfica.
Dois títulos discretos, mas essenciais, podem simbolizar essa procura: "Neruda", do chileno Pablo Larraín (Quinzena dos Realizadores), e "La Mort de Louis XIV", do espanhol Albert Serra (sessão especial, extra-competição, da selecção oficial). O primeiro pelo modo como refaz, criticamente, algumas memórias do poeta; o segundo através da fixação da história nesse lugar em que a afirmação do poder acontece numa perturbante proximidade com a morte — sem esquecer que é protagonizado pelo admirável Jean-Pierre Léaud, distinguido na sessão de encerramento com uma Palma de Ouro honorária.
Todos estes filmes chegarão ao mercado português, esperemos que num momento não demasiado distante desta tão rica actualidade. Dito de outro modo: poderemos manter-nos ligados às lições essenciais de Cannes e, nessa medida, enfrentar os desafios de ser espectador que o cinema continua a colocar.