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“Entroncamento” é a segunda longa-metragem de Pedro Cabeleira, filmada num lugar que o realizador conhece bem. Está presente na ACID, uma secção paralela de cinema independente no Festival de Cannes.

Comecemos por mapear o território do filme. O Entroncamento é um lugar que tu conheces.

Sim, conheço perfeitamente o Entroncamento. Cresci lá e os meus pais ainda vivem lá. O meu irmão também só se mudou para Lisboa recentemente. Ia lá muitas vezes visitar a família e agora voltei, pelo menos durante dois anos, enquanto estive a trabalhar no filme. Para mim é um lugar muito especial que conheço bem, é o lugar onde crescemos.

Um lugar que provavelmente mudou considerando a tua vivência prolongada. Aquilo que mostras no filme é uma história bastante atual, sobre contextos de vivências no Entroncamento. Podemos falar de uma grande mudança do ponto de vista social? Até que ponto a cidade mudou nos últimos anos?

A cidade mudou bastante, mas acho que o filme não apanha isso, porque a cidade, nos últimos quatro, cinco anos, tem mudado a cada seis meses. Tem-se tornado mais multicultural, porque muitas pessoas estão a ser expulsas da periferia de Lisboa e o que acontece é que a periferia está a alargar-se e o Entroncamento, como fica a uma distância mais ou menos de uma hora e picos de Lisboa de comboio.

As pessoas estão a ser expulsas das periferias devido aos preços das casas, estão a ir para lá viver e o que acontece é que a cidade está cada vez mais multicultural e está-se a tornar cada vez mais uma cidade dormitório de Lisboa. O que acho que está a ser interessante é que essas novas comunidades estão a enraizar-se no Entroncamento, mas o filme, apesar de tudo, ainda não apanha esses fenómenos mais recentes.

O filme apanha a realidade de quando comecei a escrever o filme, em que algumas pessoas saíam de Lisboa para se estabelecer no Entroncamento, mas ainda é muito sobre as pessoas que lá ficaram, principalmente as pessoas da minha idade, que nunca tiveram a oportunidade de sair de lá, como aconteceu comigo.

Como é uma cidade em mudança e como estamos num país que está a mudar muito rapidamente não é possível acompanhar o ritmo. Obviamente, uma coisa que acho que o filme está a acompanhar mais até do que a mudança social é esta mudança da forma de pensar das pessoas no interior, de se estarem a radicalizar muito, precisamente também por o país estar a mudar. As pessoas estão, de certa maneira, a reagir a isso. E há, obviamente, um oportunismo político de agarrar isso para manipular as pessoas.

Sendo o um lugar de passagem, uma estação ferroviária que todos conhecemos, quando virem o filme, as pessoas vão entrar em contacto com um Entroncamento diferente daquele que imaginam.

As pessoas associam o Entroncamento a uma cidade dos comboios e à terra dos fenómenos, mas esquecem-se de que o Entroncamento também é representativo do Portugal fora dos dois grandes centros urbanos, que são Lisboa e Porto. É um Entroncamento vivido pelas pessoas que estão lá e não pelas pessoas que o conhecem como local de passagem.

O filme foca-se num grupo muito específico de pessoas, mas são pessoas que habitam a cidade há muitos anos. Também dou a conhecer esse lado que representa muitas outras cidades, também pequenas.

De repente parece que estamos num subúrbio de Lisboa, ou também do Porto, porque uma das personagens principais na narrativa vem do bairro do Cerco.

Sim, exatamente. O Entroncamento tem este caráter suburbano, desde criança que me lembro desse caráter suburbano, muito também por causa dos comboios e da relação com as outras cidades que estão à volta, principalmente com Lisboa. É diferente de outras cidades do Ribatejo que circundam o Entroncamento. Tem mais esse lado meio de subúrbio, é uma cidade muito pequena, não tem uma zona rural como Torres Novas, ou como outras cidades que estão à volta.

Acho que o som dos comboios tira logo o lado rural, sente-se muito movimento, a passagem do comboio, portanto, sim, apesar de já ser longe dos grandes centros urbanos, tal como Lisboa ou Porto, ao mesmo tempo, não perde esse caráter de subúrbio. Essa personagem, que é enigmática, vem realmente de uma grande cidade, vai encontrar refúgio e, de certa maneira, vai alterar a dinâmica das outras pessoas.

Este quebra-cabeças que propões, estas várias geografias que confluem, no Entroncamento e que enquadras no filme em dinâmicas, muitas vezes, de marginalidade, de pequenas traficâncias, pequenos negócios, pessoas que vão fazendo o que podem para sobreviver. É algo é evidente para ti? Para conseguires a verdade daquelas personagens até onde foste na preparação do filme?

O filme é mais ou menos uma costura de várias pessoas que eu conhecia e também não deixa de ser um projeto de ficção. Portanto, os personagens que estão lá são sempre inventados. Como conheço as pessoas de lá, consegui criar este universo, esta realidade paralela que, de certa maneira, é alicerçada na realidade, mas não deve ser confundida com situações específicas.

O filme também tenta retratar a dinâmica entre as diferentes comunidades que habitam a cidade e que coabitam um espaço geográfico tão pequeno que aquilo acaba por estar em constante tensão. Isso acho que tem um bocadinho a ver também com a minha vivência.

É um filme mosaico que acontece em pouco mais de duas horas com meia dúzia de personagens centrais e outras secundárias. Foi complexo integrar estas histórias com equivalência semelhante? Porque todas as personagens têm um espaço. Em boa verdade, podemos dizer que são todas secundárias em determinados momentos da narrativa e todas principais.

Essa observação é mesmo na mouche, o filme realmente tem personagens que são, ao mesmo tempo, principais e secundárias com as consequentes momentos do filme e eu sinto que isso foi um quebra-cabeças muito difícil de montar, quer na escrita do argumento, quer durante a rodagem e depois no trabalho de montagem, foi um trabalho longo e complexo, porque gostava de todos os personagens.

O filme tem estreia em Cannes, mas só chegará aos cinemas portugueses mais tarde. Numa altura em que Portugal está a viver um novo momento eleitoral, seria interessante e oportuno que este filme fosse visto agora nos cinemas nacionais?

Sim, era oportuno, infelizmente não vai chegar a tempo da estreia, mas com o cenário político que estamos a viver, não sei se quando estrear não vamos estar outra vez em eleições.

Porque tem este olhar sobre a imigração num lugar que não é Lisboa e levanta questões diferentes daquelas que normalmente são discutidas, não é?

Sim e também o que me interessa no filme é dar a compreender que estes novos movimentos políticos que estão a aparecer, estão a conquistar pessoas que sempre se sentiram abandonadas e frustradas com a sua vida, porque estavam longe dos grandes centros. De repente, encontraram alguém que lhes disse que sempre tiveram mal por causa destes fenómenos que, na verdade, até são recentes, que não fazem absolutamente sentido nenhum.

O filme associa muito essa frustração de uma vida que sempre foi uma vida sem muitas perspetivas e os novos movimentos políticos estão, a meu ver, de a gerar o ódio e a criar divisões quando ideia de progresso é precisamente o oposto, é unir as pessoas, porque quando estamos juntos somos mais fortes, e quando nos tentamos dividir é quando, enquanto país, vamos ser seguramente mais fracos e pobres.

Acho que o filme tenta olhar para isso, tenta de certa maneira chamar a atenção para isso, não de uma maneira muito direta e eu nem gosto de me ver como uma pessoa muito política, mas acho que os tempos estão mesmo a pedir, é quase impossível abstermo-nos, não é? Portanto, sim, era importante que ele se calhar fosse visto já, mas acho que quando ele for visto, infelizmente ainda vai ser atual.

  • tiago alves
  • 17 Mai 2025 11:29

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