22 Mai 2022 11:39
O vaguear de um burro alvo da loucura da humanidade: na competição oficial em Cannes, "Eo" (o título reproduz o som do zurrar), do polaco Jerzy Skolimowski, ousa fazer do animal a personagem principal de um filme com uma sublime fotografia.
Eo é mimado por Kadandra, uma artista de circo. Ele adora as atenções e as festas até ao dia em que um grupo de activistas dos direitos dos animais, ironicamente, o "libertam", enviando-o para uma quinta da qual ele acaba por fugir. De lá começa uma viagem solitária dos campos polacos aos Alpes italianos, que Jerzy Skolimowski filma à altura do garrote.
Ao ritmo da respiração de Eo, potente ou seca, difícil quando está ferido, e nos seus grandes olhos tristes, o espectador partilha a angústia do burro.
A beleza das imagens é impressionante, das florestas de sonho a chamas imaginárias até às montanhas imortalizadas em sépia, alinhadas com a violência dos sons, o rachar dos chicotes, ou os gritos perturbadores dos animais.
Jerzy Skolimowski inverte os papéis: o burro, todo inocência e sensibilidade, é confrontado com seres humanos bestiais e estúpidos, como que desprovidos de alma, ou abandonados à loucura.
Eo, um animal doméstico, procura obstinadamente a companhia humana, como na cena burlesca onde acompanha um grupo de fãs de desporto bêbados.
O homem que prende, submete e brutaliza os animais, está sempre presente, como na cena de pesadelo onde Eo corre assustado por uma floresta, à noite, até encontrar um lobo moribundo, baleado.
Após sete anos longe do ecrã, aos 84 anos, Jerzy Skolimowski quis prestar homenagem ao "único filme que o levou às lágrimas": "Au hasard Balthazar" de Robert Bresson (1966), no qual se inspirou muito.
"Espero que este filme toque o maior número possível de corações e cérebros humanos", disse Skolimowski num vídeo lançado sexta-feira em Cannes, denunciando também "o facto de o homem usar animais para a sua carne, ou o seu pêlo". O director, que sofreu uma queda, não pôde comparecer em Cannes e encontra-se actualmente hospitalizado em Varsóvia.
A violência denunciada pelo filme nunca ocorreu durante as filmagens, garante o realizador que explica "com o meu burro, a única forma de o persuadir a fazer alguma coisa foi através da ternura".
Nascido em 1938 em Lodz, no centro da Polónia, Jerzy Skolimowski foi profundamente marcado pela Segunda Guerra Mundial. Pilar da Nova Vaga do cinema polaco nos anos 60, os seus filmes incluem "Adolescente Perversa", "O Uivo", ou "Quatro Noites com Anna".