Jafar Panahi: um discurso de liberdade
Estreia-se esta semana nos cinemas portugueses "Foi Só Um Acidente", o novo filme de Jafar Panahi, obra inspirada na mais recente detenção do realizador iraniano e na sua experiência dentro nas prisões políticas de Teerão.
Rodado em segredo ao longo de 25 dias, “Foi Só Um Acidente” conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2025, consolidando Panahi como um dos poucos cineastas a vencer os três grandes festivais europeus — Berlim, Veneza e Cannes. Marcou também o regresso de Panahi às sessões de gala e à passadeira vermelha.
Num discurso emocionado após a apresentação do seu filme, lembrou os que continuam presos e a necessidade de construir um novo Irão.
Oriundo de uma família modesta, Panahi teve o primeiro contacto com o cinema ainda na escola primária onde pode usar uma câmara de 8mm. Aos 20 anos, durante o serviço militar obrigatório, Panahi viu-se na frente da Guerra Irão-Iraque (1980-1988) como cinematógrafo das forças armadas iranianas.
Frequentou a Escola de Cinema e Televisão de Teerão e foi assistente de realização de Abbas Kiarostami, o maior nome do cinema iraniano que escreveria o argumento de dois dos seus filmes.
A história pessoal que marca esta obra remonta a 2010, quando Panahi foi preso num apartamento enquanto filmava com a família e o amigo e colega Mohammad Rasoulof. Após três meses de detenção, foi condenado a seis anos de prisão com pena suspensa. Ficou igualmente proibido de sair do Irão, conceder entrevistas, ou realizar filmes — uma interdição que só seria levantada em 2022 pelo Supremo Tribunal.
Apesar das restrições, Panahi conseguiu criar nesse período três trabalhos clandestinos que marcaram a sua carreira: “Isto Não É um Filme” (2011), “Closed Curtain” (2013) e “Táxi” (2015), este último premiado com o Urso de Ouro em Berlim.
O realizador voltaria a ser preso em julho de 2022, no auge do movimento “Mulher, Vida e Liberdade”, desencadeado após a morte de uma jovem detida por não usar o véu segundo as regras impostas pelo regime. Nessa altura, Rasoulof e o cineasta Mostafa al-Ahmad já haviam sido encarcerados por manifestarem apoio às mulheres iranianas.
Panahi deslocou-se ao gabinete de um procurador para pedir informações sobre os colegas e acabou detido, sob o pretexto de cumprir a antiga pena suspensa — apesar de já prescrita. Permaneceu sete meses na prisão de Evin, onde contactou com vítimas do regime detidas há décadas, antes de ser libertado em fevereiro de 2023, após uma greve de fome.

Esse regresso forçado à prisão serviu de matéria viva para o thriller “Foi Só Um Acidente”, onde um grupo de antigos prisioneiros julga reconhecer a pessoa que os torturou.
A obra conquistou o júri de Cannes e colocou Panahi num patamar reservado apenas a três outros nomes da história do cinema — Henri-Georges Clouzot, Michelangelo Antonioni e Robert Altman — que também venceram nos três grandes certames europeus.
Distinguido com o Leão de Ouro em Veneza por O Círculo (2000) e com o Urso de Ouro em Berlim por Táxi (2015), Panahi completa agora um percurso de resistência artística singular. Apesar de, por decisão do governo iraniano, “Foi Só Um Acidente” não poder representar o país nos Óscares, a França assumiu a candidatura, tendo apoiado toda a fase de pós-produção e efeitos visuais.
Fiel a uma coerência que atravessa toda a sua obra, Panahi continua a recusar o exílio. “Longe de casa, fico inquieto, aborrecido, desorientado”, costuma dizer o realizador, para quem a liberdade e a criação permanecem indissociáveis do solo que tanto o limita quanto o inspira.