

O AGENTE SECRETO: a pirraça nos anos da ditadura brasileira
Num momento de sucesso internacional para o cinema brasileiro, Kléber Mendonça Filho apresenta à competição do Festival de Cannes um brilhante filme de género a piscar o olho ao thriller e à aventura de espionagem.
Kléber Mendonça Filho apresentou “O Agente Secreto” na competição do Festival de Cannes com um excelente acolhimento. O mais recente filme do realizador pernambucano regressa a 1977 e a um Brasil atormentado pela ditadura militar. Acompanha Marcelo, um homem que foge de um passado conturbado para chegar a Recife onde espera construir nova vida e reencontrar a família. A partir daí desenvolve-se um thriller peculiar enquanto o protagonista enfrenta as ameaças de morte que pairam sobre a sua cabeça.
Kléber, está claramente cansado. Imagino que esteja a ser um festival atribulado, com muitas solicitações em função da forma como o filme está a ser recebido.
Ah, mas tem sido intenso de uma maneira fantástica. Tivemos uma excelente estreia no domingo e, nos últimos dois dias, estou aqui internado, conversando com a imprensa, que é algo que me agrada bastante. Gosto dessa experiência de conversar sobre o filme. Sim, estou um pouco cansado, mas feliz.
O filme começa por apresentar o período em que decorre, final da década de 70, em plena ditadura militar, dizendo que é um tempo conturbado, marcado pela ‘pirraça’, uma palavra que conhecemos bem, mas que não utilizamos tanto em português de Portugal. O que é a ‘pirraça’ neste contexto, Kléber?
Pirraça é uma palavra que me agrada muito no português do Brasil e que eu não tenho mais visto nem ouvido com tanta frequência. É como se pertencesse a outro tempo e, talvez, a pessoas mais velhas no Brasil.
Achei que era uma maneira muito brasileira e um pouco irónica, no sentido de descrever os problemas do mundo como uma questão de pirraça. No final das contas, acho que faz algum sentido.
Mas fico até muito feliz, porque tenho tido uma reação forte a essa palavra.
Você está trazendo isso aqui agora, eu ouvi já de três pessoas que viram o filme, mas, de fato, na imprensa é a primeira vez que isso surge, até porque é um jogo com uma palavra da nossa língua, que é o português.
E é boa também para definir aquilo que está a acontecer hoje? Porque, obviamente, o filme tem essa atualidade?
Com toda certeza, o mundo não está passando por uma carência de pirraça. Acho que a pirraça continua presente em toda a atividade humana, infelizmente.
Num determinado momento, percebemos que há uma linha narrativa semelhante à de “Ainda Estou Aqui”. O agente secreto ameaçado de morte e o filho, no presente, tem dificuldade em lidar com o passado. É uma questão pessoal devido às circunstâncias, ou reflete um estado mental do Brasil? Decorridos 50, 60 anos após a ditadura, ainda há essa incapacidade coletiva de olhar para os acontecimentos?
Sua pergunta é boa, mas acredito que, ao escrever o roteiro, pensei muito na dificuldade que o meu país tem de olhar para o passado e de falar de coisas desagradáveis do passado. Acredito que isso começou com a lei da amnistia, em 1979, que foi um pó de perlim-pim-pim que o governo militar cedeu de presente e isso eu acredito que deixou uma marca, um trauma psicológico na forma como o Brasil lida com o passado e com a história.
Portanto, esse acerto de contas que não foi feito devidamente, estará a ser feito através do cinema?
O Agente Secreto está chegando agora, em 2025, meses depois do sucesso fenomenal do “Ainda Estou Aqui”, do Walter Salles, um filme que também lidava com a questão da memória dos anos 70 no Brasil. Gosto muito de ver os dois filmes juntos porque eles parecem irmãos que não se conheciam, de uma certa forma são muito parecidos e totalmente diferentes.
Eu não acredito que o cinema muda o mundo, mas acredito que o cinema possa trazer um bom debate, uma boa discussão e possa trazer alguma informação para o povo, para as pessoas.
Creio que “O Agente Secreto” apresenta um panorama do meu país e eu tenho muita curiosidade como o filme será recebido no segundo semestre no Brasil. Até agora tem ido muito bem aqui em Cannes, não só junto da imprensa brasileira, mas da francesa e outra imprensa estrangeira também. Muito bem recebido.
A forma como o filme pode ser recebido leva-me a lembrar algo que aconteceu com o “Ainda Estou Aqui”, em Portugal. Sentimos uma polarização tremenda nas redes sociais do CINEMAX, onde divulgámos entrevistas com a Fernanda Torres e com o Walter Salles.
O nível de violência dos comentários que apareciam em várias publicações era muito elevado. Este filme é diferente, mas há a expectativa de que o filme acentue essa polarização junto dos espectadores brasileiros, que isso volte a suceder?
Muitas vezes existem ataques nas redes sociais pelo simples fato de eu ser jornalista, ou cineasta. Às vezes também você fala no microfone que a água é molhada e surgem ataques imediatos, porque você falou que a água é molhada.
Então, a existência de um filme brasileiro visto no mundo inteiro e no Brasil deveria ser festejado e não gerar uma polarização. É como, por exemplo, você ficar sabendo que um produto agrícola brasileiro vai ser vendido para 50 países e isso gerar polarização. Não entendo o sentido disso.
Mas entendo que o mundo e o Brasil, nos últimos 10 ou 15 anos, passou por um envenenamento, um momento extremamente tóxico, onde muita coisa que era certa agora é vista como errada e muita coisa que sempre foi errada e sempre será errada, hoje é vista como certa. E eu acho que esse veneno vem da extrema-direita.
Já estou polarizando, mas é uma verdade absoluta. É um veneno que vem da extrema-direita e precisamos enfrentar essas péssimas ideias com a vida normal e tentando ser justo com o mundo e falar as coisas de uma maneira que clara e verdadeira, porque esse mar de mentiras não ajuda ninguém.
Então, eu prefiro ser otimista e achar que um filme brasileiro que viaja o mundo inteiro e que fala da história do Brasil é algo positivo. É algo que deveria ser celebrado.
“O Agente Secreto” é um filme diferente porque é um filme de género. Desde logo há uma reconstituição da época extraordinária, com uma energia musical, sonora, visual espantosa, filmado num lugar que te diz muito.
Gostaria de perceber até que ponto o género de filme de espionagem e, claramente, o thriller, é algo que te interessou do ponto de vista cinematográfico, porque também o trabalhaste nos filmes anteriores, em “Retratos Fantasmas”, sobre os cinemas do Recife, por exemplo, no “Bacurau”, que é uma distopia futurista sobre o Brasil.
Até que ponto o género pode levar a que pessoas mais radicalizadas olhem para o filme de outro modo?
Radicalizadas em que sentido?
No sentido político, como estávamos a falar, ou seja, pessoas com uma opinião mais extremada.
“O Agente Secreto” não é exatamente sobre um fato histórico que aconteceu, mas ele é sobre uma atmosfera histórica que tivemos. Em cima dessa atmosfera, ela é extremamente verdadeira.
Tentei trazer é uma textura do Brasil muito verdadeira e realista, de tempo, de espaço, de cores. Às vezes eu pensava muito em cheiro. Não é possível fazer um filme com cheiro, mas eu pensava muito na ideia de você fazer um filme que fosse palpável quase na forma como o retrato uma época.
Então, eu me pergunto como… a grande questão é que sempre que você faz um filme você não sabe como será recebido. Estamos aqui na estreia mundial do filme e eu me pergunto como o filme será visto no Brasil. Mas é um filme muito brasileiro e muito universal, pelo que eu estou vendo. E claro que pela proximidade cultural de Portugal com o Brasil, pela língua e por questões históricas e políticas que nós temos, acredito que comunicará muito bem com Portugal. Quero ver, estou muito curioso.
Cena de “O Agente Secreto”
Esse lado mais sensorial tem obviamente elementos muito próprios da cultura nordestina, elementos de fantasia. Não podemos deixar de falar da perna cabeluda. Que história é esta da perna cabeluda que anda?
Num regime autoritário, violento, truculento e burro, você tem limitações de expressão, você não pode falar certas coisas.
Principalmente se você trabalha na mídia e na imprensa. Então, o Recife sempre teve um lado muito irreverente, sarcástico e político também, eu diria. E muito para o lado da esquerda.
Essa união de todos esses elementos eu acho que gerava um certo tom anárquico. E, na impossibilidade de falar o que aconteceu ontem à noite, de eventos violentos que aconteceram na noite envolvendo a polícia, ou gente do exército. Em geral, violências contra a comunidade gay, alguém fumando maconha no parque, jovens cabeludos, como se falava na época. Quando a polícia vinha e espancava essas pessoas, ou tinha um tratamento violento, um jornalista no Recife, o Jota Ferreira, ele inventou esse código.
Quando ele tinha que relatar algo que aconteceu nesse sentido, ele usava o código ‘A Perna Cabeluda’: ‘A Perna Cabeluda atacou ontem novamente, no Parque 13 de maio’.
E isso virou uma lenda urbana que marcou uma época. Eu cresci como criança ouvindo a história da Perna Cabeluda. Finalmente, no meu quinto filme, tive a oportunidade de filmar isso. Isso está no filme e, pelo que entendi, a cena é um sucesso.
Indo novamente à época dos anos 70, é inevitável pensarmos que foi o grande momento do Cinema Novo brasileiro.
Filmes como “O Agente Secreto”, estão a mobilizar muitos espectadores no mundo inteiro para o cinema brasileiro. Quando filma este momento histórico, também está a pensar nos cineastas dessa época do cinema novo brasileiro?
Penso sempre porque, inevitavelmente, você faz parte de uma linha do tempo da produção brasileira. O Cinema Novo aconteceu quase 60 anos atrás. E foi um movimento que me marcou muito.
Vim muito tempo depois, sou já de gerações mais adiante, mas sempre sinto que o que foi construído no Cinema Novo faz parte do que eu faço hoje. Então, eu não sei, também tenho uma certa dificuldade de colocar os meus filmes numa perspetiva histórica. Acho que alguém como você talvez esteja mais equipado para fazer isso olhando de fora. Mas o cinema novo é uma referência constante para qualquer pessoa que faz cinema no Brasil.