26 Set 2023

Um realizador em crise pessoal, perturbado pelas transformações do cinema nas salas e fora delas, e com as ideias do próprio cinema. Esta é a personagem principal de “O Sol do Futuro” que esteve em competição no último festival de Cannes.

Nanni Moretti é Giovanni, um realizador em crise pessoal e profissional que está a rodar um filme sobre os ideais comunistas em Itália nos anos 50 do século passado. Ao mesmo tempo, escreve o argumento de outro filme e sonha fazer um musical com canções antigas italianas.

O passado atravessa-se na vida da personagem que se interroga sobre os projetos terão interesse perante a falta de conhecimento do público sobre a história do seu país. Será que o cinema deve resgatar o passado? Nanni Moretti diz que sim, mas – “Não nos devemos contentar em ter um tema, e um argumento importante e perder o interesse em fazer um bom filme, bem escrito e bem representado. O importante é não usar o tema para chantagear o espectador (…) e defender que o público tem de ver o filme porque é importante”.

No filme que está a rodar, uma secção do partido comunista entra em conflito com a ideologia, que não consegue condenar a invasão da Hungria pela União Soviética. As personagens são postas à prova tal como ainda hoje, os ideais políticos podem ser questionados no contexto da invasão da Ucrânia.

Apesar do argumento ter sido escrito muito antes do atual conflito, Nanni Moretti, diz ter sido surpreendido pelas semelhanças com o presente. “Nós escrevemos o argumento um ano antes da invasão da Rússia à Ucrânia. Não podia pensar que aquela imagem antiga de quase um século, da invasão da União Soviética, pudesse ser dramaticamente actual com a invasão russa à Ucrânia”. O realizador, que integrou o partido comunista na juventude, diz que “Só alguém muito louco pode defender Putin nos dias de hoje”.

Para lá das reflexões políticas, Giovanni o realizador do filme dentro do filme é um artista à procura de um caminho para o seu cinema, ao contrário de Nanni Moretti que, com 50 anos de carreira cumpridos este ano, está confortável com a sua veia de inspiração, muitas vezes pessoal e interpretada pelo próprio. Por isso, quando lhe perguntaram na conferência de imprensa de apresentação de “O Sol do Futuro”, em quem se inspirou para a personagem Giovanni, o realizador não hesita em dizer que foi em Giovanni Moretti!

Autor de filmes como “Palombella Rossa”, “Querido Diário”, “Aprile”, “O Quarto do Filho”, ou “Três Andares”, Nanni Moretti faz um cinema que vem do seu lugar no mundo, sempre em tom irónico que muitas vezes se transforma em auto ironia. O apurado sentido crítico do realizador passa neste filme, pelo dilema em que vive o próprio cinema, na coexistência com as plataformas de streaming.

Numa das cenas mais hilariantes, o realizador Giovanni, forçado a recorrer a uma conhecida plataforma em busca de financiamento, é confrontado com os números que ditam as regras do cinema nos nossos dias e os formatos criados para o sucesso. Para Moretti, a questão nem se coloca: “Enquanto existirem salas de cinema, farei filmes para ver em cinema. No futuro, se tiver menos dinheiro para financiar os meus filmes, farei cinema com menos dinheiro. Mas enquanto as salas estiverem abertas, farei filmes para o cinema”.

E, para não restarem dúvidas, antes da conversa com o Cinemax terminar, Moretti aproveita o gravador ligado para rematar a alto e bom som: “and fuck the platforms!”

“O Sol do Futuro” estreia a 28 de setembro nos cinemas portugueses.

  • Lara Marques Pereira
  • 26 Set 2023 17:08

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