23 Mai 2017 1:33
O universo do coreano Hong Sang-soo provoca em alguns espectadores (incluindo o autor deste texto) uma sensação desconcertante, eventualmente sedutora: por um lado, reconhecemo-lo como um cineasta de temas universais enredados com os contrastes das relações humanas; por outro lado, a distância (geográfica e cultural) que também sentimos faz-nos perguntar se não confundimos os sinais pertinentes e os meramente circunstanciais.
Neste pressuposto, o seu filme na competição de Cannes, "Geu-hu" ["The Day After"], será um dos seus trabalhos mais transparentes. É, pelo menos, um filme que podemos inscrever num modelo de (melo)drama mais ou menos corrente em cinematografias das mais diversas paragens — e tanto mais quanto se apoia em situações de um quotidiano rotineiro que vai revelar as suas fissuras.
Para nos ficarmos por uma referência sugestiva, talvez se possa dizer que "Geu-hu" é uma variação coreana sobre um certo tipo de abordagem das relações amorosas que, no cinema francês, terá uma das suas expressões mais requintadas nos "Contos Morais" de Eric Rohmer (incluindo "A Minha Noite em Casa de Maud", de 1969).
Dito de outro modo: esta é a história de um pequeno editor, casado, que mantém uma relação com a sua empregada — tudo isso se cruza com as memórias de uma outra empregada que teve uma presença efémera na empresa… Tal como em Rohmer, tudo ou quase tudo passa pelos diálogos e não será por acaso que Hong Sang-soo os filma quase sempre com as personagens frente a frente, de perfil para a câmara — assistimos a um jogo de exposição e ocultação, um verdadeiro teatro da palavra.
"Geu-hu" é o objecto minimalista da selecção oficial deste ano. Feito com meios obviamente muito simples, fotografado num preto e branco harmonioso e, apetece dizer, "de reportagem", o filme expõe uma teia de comportamentos em que traição e dissimulação se insinuam nas superfícies mais estáveis da existência das personagens — enfim, um pouco de "psicologia" num festival que tem andado por caminhos bem diversos.