25 Mai 2014 1:51
Quem perdeu o Festival de Cannes de 2014? Digamos que foram os irmãos Dardenne, pela primeira vez saindo da Côte d’Azur sem qualquer distinção. "Quatre Jours, une Nuit" prolonga de forma tão depurada e segura o seu universo de histórias laborais, a ponto de integrar um corpo "estranho" a tal sistema, isto é, uma verdadeira estrela, Marion Cotillard — e sem beliscar minimamente as opções artísticas dos autores e respectiva lógica narrativa.
É pena, já que, tal como o título distinguido com Palma de Ouro, "Winter Sleep", de Nuri Bilge Ceylan, "Quatre Jours, une Nuit" reitera a possibilidade — porventura a urgência — de um realismo realmente (passa a redundância) disponível para a complexidade dos factores humanos e, acima de tudo, para a afirmação de um princípio visceral de ética narrativa. Ou seja: é pelas suas acções que as personagens definem a sua identidade, logo o seu lugar na história.
Ninguém como Jean-Luc Godard para desmontar, obsessivamente, os paradoxos, contradições e complementaridades desse princípio de acção/acções em que se define a própria identidade do cinema face à saturação de imagens em que, mal ou bem (muitas vezes mais mal que bem), somos obrigados a viver — "Adieu au Langage" corresponde, assim, a um momento cristalino de síntese cujo motor inicial está nessa obra monumental que é "História(s) do Cinema" (1994-98).
Nesta conjuntura de filmes que, de facto, discutem, não apenas os modos de representação do real, mas a sua própria inserção no aqui e agora da história colectiva, "Le Meraviglie", da italiana Alice Rohrwacher, terá deixado um sinal caloroso de retorno às origens. Que origens? Pois bem, as de um classicismo italiano (e europeu!), também ele envolvido com as dúvidas e os desafios do(s) realismo(s). Não desesperemos, por isso — Cannes/2014 deixou a certeza de que o cinema como acontecimento específico é uma coisa que existe e, mais do que isso, resiste. Ah, sem esquecer Cronenberg!