

THE SHROUDS – AS MORTALHAS: Cronenberg e o luto
No seu filme mais pessoal, David Cronenberg encara a dor da perda com um olhar tecnológico, mas surpreendentemente íntimo.
O luto está na base da longa-metragem de “The Shrouds – As Mortalhas”, de David Cronenberg, um defensor dos avanços tecnológicos. As histórias que idealiza seguem essa premissa de olhar para a tecnologia como uma extensão do ser humano.
Em “The Shrouds – As Mortalhas”, volta a focar-se no corpo e na morte. O cineasta falou sobre a sua visão desses temas durante a conferência de imprensa que deu no último LEFFEST – Lisbon and Estoril Film Festival:
Não o considero um filme espiritual, sou ateu existencialista. Quero dizer, o mais perto que estive de experimentar a morte foi quando estava a ser operado. Uma operação cirúrgica deixa-nos inconscientes, não se sonha, desaparecemos. Para mim, é o que acontece depois da morte.
Diria que não faço filmes espiritualistas. Mas quando se diz que alguém é muito espiritual, não significa que o seja num sentido religioso. Também queremos dizer que é alguém muito simpático, sensível e empático.
A esse nível, sim, posso dizer que é um filme espiritual. Mas com o significado de espiritual ligado à religião e à vida depois da morte, rejeito-o completamente. Não considero que este filme seja mais espiritual do que os meus outros filmes. Mesmo “Crimes do Futuro”, por muita ficção científica que tenha, lida com a morte. Todos os filmes o fazem, garantidamente. Acho que não se pode falar da vida sem se falar da morte. Não vejo como se pode fazer isso.
Realizador de filmes como “Crimes do Futuro”, “Cosmopolis”, “Crash” e “A Mosca”, David Cronenberg é mestre a combinar elementos de horror com ficção científica. O cineasta diz que faz filmes realistas, não considera ser o padrinho do cinema do horror corporal:
Sinceramente, não sei o que é o horror corporal. Aparentemente, eu sou o padrinho do ‘body horror’, mas não faço ideia do que seja. Não é um termo que alguma vez tenha usado.
Considero que este é um filme muito realista. Quando muito é horror médico. Quando se está na máquina de tratamento médico, é bastante horrível. E, para mim, é realista. Não é realmente um ‘body horror’. É apenas realismo.
A mais recente longa-metragem de David Cronenberg é inspirada na mulher Caroline, que morreu em 2017, um acontecimento que afastou o cineasta da realização.
Em “The Shrouds – As Mortalhas”, a personagem central é um bem-sucedido homem de negócios que fica inconsolável com a morte da mulher. Inventa então um sistema tecnológico que permite aos vivos ligarem-se às mortalhas dos mortos e acompanhar em direto o que está a acontecer com o corpo. Quando são vandalizadas várias campas, incluindo a da mulher, ele parte numa busca frenética para encontrar os culpados:
Esta história começou por ser uma série que se transformou depois num filme. A minha mulher tinha 43 anos quando morreu em 2017. Éramos muito próximos. Criamos três filhos juntos. Passei dois anos a cuidar dela quando esteve doente e por isso não fiz nenhum filme. Pensei que nunca iria fazer mais filmes.
Acabei por ser convencido a realizar “Crimes do Futuro”, um guião que tinha escrito há 20 anos. Então, percebi que continuava interessado em fazer filmes.
O tema seguinte era óbvio para mim, seria a minha perda, a perda da minha mulher. Mas não queria fazer apenas um filme sentimental, de luto. Há muitos filmes desses. Queria fazê-lo à minha maneira. Tinha que ser, ao mesmo tempo, engraçado e triste. E teria de ter algumas coisas inventadas. Não queria fazer uma espécie de autobiografia. Estava interessado em fazer uma série para ‘streaming’ e fui a Los Angeles. Gostaram e financiaram os primeiros episódios, mas depois decidiram não continuar. Como gostava muito do que tinha escrito, decidi fazer um filme.
Quando se perde um familiar, há sempre a busca de um culpado pelo que aconteceu. O filme mostra essa demanda. David Cronenberg, reconhece o aparente caos da narrativa, mas justifica que é o que acontece na realidade:
Tem a ver com o luto, com a reação ao luto e à forma como lidamos com ele. A minha experiência tem a ver com o existencialismo, o absurdo da existência humana, o desejo de aceitar isso e a forma de lidar com a perda, que é insuportável. Se falarmos com outras pessoas, uma das formas como isso acontece é transferir a causa do que aconteceu para o hospital, para os médicos, dizer que não sabiam o que faziam.
E há sempre um sentimento de culpa por parte da pessoa que sobrevive e a sensação de que deve haver uma razão para este acontecimento completamente irracional. Surge a pergunta, ‘por que é que isto lhe aconteceu?’ É uma forma desesperada de tentar dar sentido a tudo e acho que todas as teorias da conspiração têm isso. Nunca se encontra realmente a pessoa que matou a nossa mulher, mas pode ter havido alguém que o fez.
E por que o teria feito? Por que fariam isso? Vai ver as radiografias dela para encontrar respostas. É por isso que ele está a passar. O filme torna-se muito subjetivo em vez de objetivo.
Alguns críticos disseram que o filme é uma confusão porque não percebem o que está a acontecer. Sim, é verdade. É a vida, sabe?
Com um toque de humor negro, “The Shrouds – As Mortalhas” é uma viagem emocional e introspetiva ao luto e à memória. Estreia esta semana nos cinemas portugueses.