15 Set 2020 13:28
O primeiro festival de cinema realizado no período da pandemia decorreu com restrições que afetaram a seleção de filmes e de convidados – a seleção oficial apresentou menos obras do que é habitual e alguns realizadores ou atores não puderam marcar presença na estreia como sucedeu com os premiados.
Ainda assim esta 77ª edição do festival foi estimulante. Veneza voltou a consagrar um filme norte-americano que vai sobressair da temporada de prémios ("Nomadland"), acarinhou o cinema português ao consagrar amplamente "Listen", a primeira obra de Ana Rocha de Sousa, e numa edição que promoveu a paridade com oito filmes realizados por mulheres em 18 da seleção oficial, consagrou Cloé Zhao como a quinta realizadora a receber um Leão de Ouro.
A seleção do CINEMAX é diversa em termos de produção reunindo filmes de Portugal/Reino Unido, Índia, Brasil, Itália, Alemanha, Espanha, México, Suécia, Estados Unidos. Estas são as nove longas-netragens que gostaremos de ver nos cinemas portugueses. A décima escolha é uma curta-metragem, um dos grandes filmes deste festival.
A Voz Humana, Pedro Almodóvar
Seleção oficial fora de competição
Um dos filmes mais estimulantes da seleção oficial de Veneza
é uma curta-metragem, "A Voz Humana", que Pedro Almodóvar filmou em plena
pandemia com Tilda Swinton desempenhando o papel da mulher frustrada e solitária
que é abandonada pelo amante. A obra de Jean Cocteau é reescrita pelo realizador mantendo a
estrutura da peça teatral, com um mulher em cena, dialogando ao telefone com
alguém que não se ouve.
é uma curta-metragem, "A Voz Humana", que Pedro Almodóvar filmou em plena
pandemia com Tilda Swinton desempenhando o papel da mulher frustrada e solitária
que é abandonada pelo amante. A obra de Jean Cocteau é reescrita pelo realizador mantendo a
estrutura da peça teatral, com um mulher em cena, dialogando ao telefone com
alguém que não se ouve.
É o primeiro filme em língua inglesa de Almodóvar mas
isso não acrescenta estranheza. O cineasta retomou um texto que inspira "Mulheres
à Beira de Um Ataque de Nervos" e explora o seu prazer pela relação entre
cinema e teatro, como tinha sucedido em "Dor e Glória". É um filme de personagem,
de emoções e encenação, explorando o espaço cénico com visão cinematográfica.
isso não acrescenta estranheza. O cineasta retomou um texto que inspira "Mulheres
à Beira de Um Ataque de Nervos" e explora o seu prazer pela relação entre
cinema e teatro, como tinha sucedido em "Dor e Glória". É um filme de personagem,
de emoções e encenação, explorando o espaço cénico com visão cinematográfica.
Miss Marx, Susanna Nicchiarelli
Seleção oficial em competição
Susanna Nicchiarelli, que se revelou em Veneza com "Nico,
1988", fez um esforço para evitar as
armadilhas de um filme de época ao filmar o drama biográfico "Miss Marx" sobre
a filha de Karl Marx. É num tom anarquista, pontuado pelo classicismo de Chopin
e o punk contemporâneo dos Downtown Boys, de Los Angeles, que ela cria um filme
intemporal que reforça a sensação de que Eleanor Marx foi uma mulher à frente
da sua época e que continua a ser muito contemporânea.
1988", fez um esforço para evitar as
armadilhas de um filme de época ao filmar o drama biográfico "Miss Marx" sobre
a filha de Karl Marx. É num tom anarquista, pontuado pelo classicismo de Chopin
e o punk contemporâneo dos Downtown Boys, de Los Angeles, que ela cria um filme
intemporal que reforça a sensação de que Eleanor Marx foi uma mulher à frente
da sua época e que continua a ser muito contemporânea.
Os seus atos políticos
são reforçados por fotografias de greves de mineiros britânicos ou por cenas
que a mostram em fábricas onde não há condições laborais. As suas convicções
feministas são contrariadas por aspetos da vida familiar que se revelam nos
comportamentos e opções do pai e do marido. O interesse do filme reside neste
retrato de um mulher que defende as suas convicções políticas e assume as suas
fragilidades pessoais. Romola Garai tem uma presença determinante para afirmar
esta mulher desafiadora.
são reforçados por fotografias de greves de mineiros britânicos ou por cenas
que a mostram em fábricas onde não há condições laborais. As suas convicções
feministas são contrariadas por aspetos da vida familiar que se revelam nos
comportamentos e opções do pai e do marido. O interesse do filme reside neste
retrato de um mulher que defende as suas convicções políticas e assume as suas
fragilidades pessoais. Romola Garai tem uma presença determinante para afirmar
esta mulher desafiadora.
Listen, Ana Rocha de Sousa
Seleção oficial Orizzonti
A atriz Ana Rocha de Sousa estreia-se na realização
de uma longa-metragem filmando o drama de uma família portuguesa emigrada no Reino
Unido que trava uma batalha para manter a guarda dos filhos. É um argumento
escrito a partir de casos verídicos de portugueses que lidaram com situações
semelhantes. O filme procura um tom realista de denuncia procurando colocar
o espectador do lado dos protagonistas.
de uma longa-metragem filmando o drama de uma família portuguesa emigrada no Reino
Unido que trava uma batalha para manter a guarda dos filhos. É um argumento
escrito a partir de casos verídicos de portugueses que lidaram com situações
semelhantes. O filme procura um tom realista de denuncia procurando colocar
o espectador do lado dos protagonistas.
Há algumas situações que revelam um
cuidado posto na investigação sobre a forma como estes processos decorrem, mas
nem sempre parece ser rigoroso na sustentação das falhas do sistema. Lucia
Moniz é sólida na representação da mãe de família revoltada que procurar reagir
à adversidade, mas a qualidade do seu desempenho sobressai perante um elenco
que nem sempre está ao seu nível. Tornou-se no filme caso do festival sendo distinguido com o
prémio do júri e melhor primeira obra na secção Orizzonti e o Bisato D’Oro para melhor
realização atribuído pela crítica independente.
cuidado posto na investigação sobre a forma como estes processos decorrem, mas
nem sempre parece ser rigoroso na sustentação das falhas do sistema. Lucia
Moniz é sólida na representação da mãe de família revoltada que procurar reagir
à adversidade, mas a qualidade do seu desempenho sobressai perante um elenco
que nem sempre está ao seu nível. Tornou-se no filme caso do festival sendo distinguido com o
prémio do júri e melhor primeira obra na secção Orizzonti e o Bisato D’Oro para melhor
realização atribuído pela crítica independente.
Narciso em Férias, Ricardo Callil e Renato Terra
Seleção oficial fora de competição
Nunca Caetano Veloso esteve
tão exposto como no documentário "Narciso em Férias" que adapta um livro da
autoria do próprio compositor que integrou a obra "Verdade Tropical". Ele olha
o espectador à medida que vai relembrando os piores momentos da sua vida
quando esteve detido durante 54 dias, sem acusação formada, pela polícia
militar no Rio de Janeiro, entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969. O filme
retoma o assunto para registar o testemunho de Caetano e é um gesto político,
um documentário que alerta para a atual realidade e os riscos que os artistas
brasileiros enfrentam.
É um filme preguiçoso e pobre do ponto de vista
cinematográfico, recorrendo a poucas imagens de arquivo ou testemunhos
complementares, mas isso permite valorizar a riqueza emocional do testemunho que
sobressai na primeira pessoa, num diálogo permanente com a câmara. Caetano
Veloso recorda e toca as músicas marcantes daquele período negro, como "Terra"
que compôs quando viu, na prisão, as primeiras fotografias tiradas do planeta a
partir do espaço. "Quando eu me encontrava preso, Na cela de uma cadeia, Foi
que vi pela primeira vez, As tais
fotografias, Em que apareces inteira,
Porém lá não estavas nua, E sim coberta de nuvens…"
cinematográfico, recorrendo a poucas imagens de arquivo ou testemunhos
complementares, mas isso permite valorizar a riqueza emocional do testemunho que
sobressai na primeira pessoa, num diálogo permanente com a câmara. Caetano
Veloso recorda e toca as músicas marcantes daquele período negro, como "Terra"
que compôs quando viu, na prisão, as primeiras fotografias tiradas do planeta a
partir do espaço. "Quando eu me encontrava preso, Na cela de uma cadeia, Foi
que vi pela primeira vez, As tais
fotografias, Em que apareces inteira,
Porém lá não estavas nua, E sim coberta de nuvens…"
Nomadland, Cloé Zhao
Seleção oficial em competição
Cloé Zhao é um nome
que se tornará mais familiar quando estrear "Eternals" o próximo filme da série "Vingadores".
A realizadora de origem chinesa dirige Frances McDormand em "Nomadland"
colocando-a a liderar um elenco de nómadas sem experiência profissional de
cinema. Este é um filme sobre caravanistas, pessoas excluídas ou marginais, que
optam por se deslocar livremente vivendo de trabalho sazonal. É uma opção de
vida forçada ou determinada por uma vontade de romper com os laços sociais e
económicos e procurar um novo sentido emocional através da viagem permamente.
que se tornará mais familiar quando estrear "Eternals" o próximo filme da série "Vingadores".
A realizadora de origem chinesa dirige Frances McDormand em "Nomadland"
colocando-a a liderar um elenco de nómadas sem experiência profissional de
cinema. Este é um filme sobre caravanistas, pessoas excluídas ou marginais, que
optam por se deslocar livremente vivendo de trabalho sazonal. É uma opção de
vida forçada ou determinada por uma vontade de romper com os laços sociais e
económicos e procurar um novo sentido emocional através da viagem permamente.
Foi
filmado ao longo de quatro meses em cenários do Nebraska, Dakota do Sul, Nevada,
Arizona e Califórnia, a partir do livro de não ficção de Jessica Bruder, "Nomadland:
Surviving America in the Twenty-First Century". Estreou mundialmente em Veneza
onde recebeu um Leão de Ouro que projeta para a próxima temporada de prémios.
Tem um certo sentido independente e livre, uma visão melancólica,mas não assume
uma proposta revolucionaria que o tema poderia sugerir.
filmado ao longo de quatro meses em cenários do Nebraska, Dakota do Sul, Nevada,
Arizona e Califórnia, a partir do livro de não ficção de Jessica Bruder, "Nomadland:
Surviving America in the Twenty-First Century". Estreou mundialmente em Veneza
onde recebeu um Leão de Ouro que projeta para a próxima temporada de prémios.
Tem um certo sentido independente e livre, uma visão melancólica,mas não assume
uma proposta revolucionaria que o tema poderia sugerir.
I Am Greta, Nathan Grossman
Seleção Oficial fora de competição
Nathan Grossman começou por filmar Greta todas as sexta-feiras, quando se sentava na rua junto ao parlamento sueco, para chamar a atenção sobre a urgência de lutar contra as alterações climáticas. Acabou por descobrir, antes de todos nós, a força do discurso da jovem ativista, que viemos a saber depois, sofre de síndrome de Asperger, é obstinada na mensagem que quer passar e pouco polida nos discursos.
O filme produzido pela plataforma de ‘streaming’ Hulu, segue as viagens de Greta entre 2018 e 2019, em longas horas de comboio, para se encontrar com líderes mundiais, ou de barco até aos Estados Unidos, para a assembleia geral da ONU e depois a Madrid para a Cimeira Climática. Pelo meio, ficamos a perceber que a jovem activista também sofre com a pressão dos acontecimentos, escreve os seus discursos, esquece-se de comer, e tem consciência de que a espécie de autismo de que sofre, a faz ver a questão ambiental a preto e branco. Mas isso para Greta é uma vantagem, tendo em conta a urgência em resolver a crise ambiental.
Lacci, Daniel Luchetti
Seleção oficial fora de competição
Onze anos depois, o Festival de Veneza voltou a ter um filme italiano na abertura de uma edição simbólica e histórica, em pleno contexto de pandemia. O realizador Daniel Luchetti adapta um romance de Domenico Starnone, de 2014, sobre os laços que unem ou amarram os elementos de uma família, ao longo dos anos. Alba Rohrwacher e Luigi Lo Cascio dão vida a um casal, pais de duas crianças, em Nápoles na década de 80, cuja união é quebrada quando ele assume ter outra mulher e permanece em Roma para viver essa paixão. Trinta anos depois, Laura Morante e Silvio Orlando encarnam as mesmas personagens que permanecem juntas.
Porquê? É a pergunta que assombra toda a história e à qual o filme tenta responder, mostrando em separado as razões do marido e da mulher e a forma como cada um encara a família. Um drama sobre as relações humanas e familiares, o que nos une e o que sobra quando os sentimentos se esgotam.
The Disciple, Chaitanya Tamhane
Seleção oficial em competição
Quase 20 anos depois da realizadora indiana Mira Nair ter conquistado o Leão de ouro, com o filme "Casamento Debaixo de Chuva", o cinema indiano voltou à competição de Veneza, com o filme "The Disciple", sobre a procura da excelência na arte. O discípulo da história é um jovem cantor de música clássica indiana que luta para alcançar o patamar de excelência, seguindo os ensinamos dos gurus, rejeitando o caminho fácil e financeiramente mais atrativo da fórmula pop que prolifera nas redes sociais e concursos televisivos. Uma procura pela verdadeira essência da arte, como uma espécie de procura espiritual, que não trás fortuna nem fama e pode até não passar da banalidade.
A mensagem é facilmente aplicada ao caminho que o realizador Chaitanya Tamhane está a tentar trilhar, afastando-se do cinema mais popular. Talvez seja prematuro considerar que "The Disciple" é uma porta de entrada para a galeria de excelência, mas é seguramente um vislumbre poético de que há muito mais para descobrir na cultura indiana. O filme conta com produção de Alfonso Cuaron, o autor mexicano que com o filme "Roma", mostrou ao mundo como o cinema dos nossos dias também pode aspirar a ser sublime.
Nueva Orden, Michel Franco
Nueva Orden, Michel Franco
Seleção oficial em competição
O realizador mexicano Michel Franco trouxe à competição de Veneza uma distopia que parece pronta a tornar-se realidade. A história começa com o casamento dos filhos de duas famílias ricas e poderosas, na cidade do México, que está a ser palco de protestos nas ruas. Com a cumplicidade dos empregados, a casa de luxo onde a festa acontece, é tomada pelos manifestantes de forma violenta, seguindo-se um verdadeiro banho de sangue. Ao mesmo tempo, instala-se o caos nas ruas, com uma resposta em força das autoridades.
A nova ordem ficcionada por Michel Franco começou por ser inspirada na situação de vários países da Europa, nas crescentes desigualdades sociais e em movimentos como os coletes amarelos, que saíram para as ruas para exigir melhores condições de vida. O realizador acabou por decidir filmar no México, mas "Nueva Orden", tem uma dimensão global, recriando uma situação que podia acontecer em qualquer parte do planeta onde as clivagens sociais sejam evidentes. Mais do que um filme ideológico, Michel Franco propõe um de alerta sobre um futuro que pode não estar muito longe de acontecer.
And Tomorow the Entire World, Julia von Heinz
Seleção Oficial em competição
Pode a luta contra a ascensão do nazismo na Alemanha ser pacifica? A reflexão é proposta pelo filme de Julia von Heinz, que acompanha uma jovem estudante de direito, quando sai de casa dos pais conservadores, para entrar numa comunidade de ocupas na cidade de Mannheim. Os jovens da comunidade têm como principal atividade perturbar a visibilidade dos movimentos fascistas locais. A chegada de Luisa precipita uma divisão interna na comuna, dividida entre manter as ações pacificas ou intervir com violência contra as atividades dos que defendem a supremacia branca.
Julia von Heinz estreia-se no palco principal dos festivais internacionais,com um filme atual e pertinente, muitas vezes próximo da linguagem documental, acompanhando com a câmara ao ombro as movimentações dos protagonistas nas ações de protesto. Um filme que acentua a discussão em torno do que é possível fazer para travar a ascensão do fascismo, e questiona se os protestos pacíficos são suficientes e se a violência poderá alguma vez ser a resposta.