09 Set 2023
Com “Pobres Criaturas”, o cineasta grego Yorgos Lanthimos, um frequentador habitual dos festivais, conseguiu finalmente a sua coroa de glória. O filme é uma espécie de Frankenstein feminino, fantástico e barroco, maioritariamente a preto e branco. Por vezes duro e cruel, “Poor Creatures” é simultaneamente divertido e uma mensagem sobre as normas que pesam sobre as mulheres.
A estrela americana Emma Stone interpreta uma criatura cândida que está aprende sobre amor e sexo. O filme e Bella Baxter, a personagem principal, “uma criatura incrível, não existiriam sem Emma Stone, outra criatura incrível”, declarou Yorgos Lanthimos ao receber o Leão de Ouro para melhor filme na 80.ª edição do festival.
Numa Itália governada pela extrema-direita, o júri presidido por Damien Chazelle (“La-la-land”, “First Man”) também enviou uma mensagem política ao atribuir vários prémios a filmes que denunciam o tratamento dado pela Europa aos migrantes.
Agnieszka Holland, figura de proa do cinema polaco, recebeu o Prémio Especial do Júri por “Fronteira Verde”, que retrata o destino trágico de migrantes da Síria, do Afeganistão e de África, apanhados entre a Polónia e a Bielorrússia em 2021, prisioneiros de um jogo diplomático que os ultrapassa.
Um jovem ator senegalês, Seydou Sarr, ganhou o prémio de Melhor Estreante pelo seu papel como um jovem migrante que arrisca a vida a atravessar África e o Mediterrâneo para chegar a Itália, no filme de Matteo Garrone “Io Capitano”, que também ganhou o Leão de Prata para Melhor Realizador.
Em termos de actores, a Mostra destacou dois americanos: Cailee Spaeny, 25 anos, pelo seu primeiro grande papel como a mulher de Elvis, Priscilla Presley, no filme biográfico de Sofia Coppola “Priscilla”, e Peter Sarsgaard, que contracena com Jessica Chastain como um homem que sofre de demência em “Memória” de Michel Franco.
Ao contrário de muitas estrelas de grandes estúdios, que não puderam deslocar-se a Veneza devido à greve, os dois vencedores subiram ao palco para receber os seus troféus.
Peter Sarsgaard aproveitou a ocasião para manifestar o seu apoio à greve nos Estados Unidos e lançar uma diatribe contra a inteligência artificial, que os argumentistas e os atores pedem que seja regulamentada. “Se perdermos esta batalha, a nossa indústria será apenas a primeira de muitas a cair”, profetizou: a medicina ou a condução da guerra poderão ser confiadas à inteligência artificial, que “abre caminho a atrocidades”.
A Mostra foi o primeiro festival internacional a ser duramente afetado pelo confronto histórico com os estúdios, apesar de algumas estrelas como Adam Driver, Mads Mikkelsen e Jessica Chastain terem comparecido, cada uma delas com o cuidado de dar o seu apoio aos grevistas.
Vencedores do 80.º Festival de Cinema de Veneza
– Leão de Ouro para Melhor Filme: “Poor Creatures” do realizador grego Yorgos Lanthimos
– Leão de Prata Grande Prémio do Júri: “Aku wa sonzai shinai” (“O mal não existe”) de Ryusuke Hamaguchi (Japão)
– Leão de Prata para Melhor Realizador: Matteo Garrone por “Io, Capitano” (Itália)
– Melhor Atriz: Cailee Spaeny pelo papel em “Priscilla” de Sofia Coppola
– Melhor ator: Peter Sarsgaard pelo papel em “Memória” de Michel Franco
– Melhor argumento: Guillermo Calderon e Pablo Larrain por “O Conde” de Pablo Larrain
– Prémio Especial do Júri: “Zielona granica” (Fronteira Verde) da realizadora polaca Agnieszka Holland
– Prémio Marcello Mastroianni para Jovem Talento : Seydou Sarr pelo papel em “Io, Capitano” de Matteo Garrone
Yorgos Lanthimos: o agente provocador grego
Com os seus filmes estranhos, sombrios e provocadores, Yorgos Lanthimos conquistou sucesso além da Grécia, até atrair grandes nomes de Hollywood.
O Leão de Ouro na Mostra de Veneza é o primeiro troféu importante conquistado por este habitual dos maiores festivais, nomeado para o Óscar de melhor realização pelo seu filme anterior, “A Favorita”, em 2019.
Nos últimos anos, filmou com Colin Farrell, Rachel Weisz e Nicole Kidman, mas foi Emma Stone, que interpreta o papel principal e também produz “Pobres Criaturas”, que lhe valeu a aclamação em Veneza.
Neste conto gótico ao estilo de Frankenstein, Lanthimos joga com os códigos do cinema clássico, entre o entretenimento e uma mensagem sobre as normas que pesam sobre as mulheres. O estilo fora de série, com efeitos visuais pesados, é mais uma vez reconhecível.
A carreira de Lanthimos, nascido em Atenas em maio de 1973, começou a ganhar forma com “Canino”, em 2009, um drama perturbador e atípico sobre relações familiares, apresentado em Cannes.
Foi a sua terceira longa-metragem depois de “O meu melhor amigo” e “Kinetta” (2005), prémio da secção Un certain regard em Cannes e filme nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.
A obra de Lanthimos insere-se numa nova tendência do cinema grego, marcada pelo legado de Michalis Cacoyannis, famoso pelo seu filme “Zorba, o Grego” (1964).
Filho de um jogador de basquetebol de quem herdou a estatura alta – mais de 1,90m – Lanthimos é discreto por natureza. As suas entrevistas são raras e o seu discurso é bastante lacónico, com um fino sentido de humor.
Começou na publicidade, nos anos 1990. Nessa altura, assinava clips para a televisão, ou para coreógrafos e grupos de teatro. Depois, ajudou a criar as cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de verão de 2004, em Atenas.
Lamentando as dificuldades crónicas de financiamento do cinema na Grécia, que aumentaram após a crise de 2010, Yorgos Lanthimos mudou-se para Londres em 2011, onde vive desde então com a sua mulher, a atriz Ariane Labed.
A capital britânica revelou-se uma boa escolha: o seu filme “Alps” ganhou um segundo prémio no Festival de Veneza em 2011.
Três anos depois, “A Lagosta”, rodado na Irlanda, ganhou o Prémio do Júri em Cannes e foi nomeado para um Óscar pelo argumento original, que escreveu com a sua fiel colaboradora Efthymis Filippou.
Foi neste thriller psicológico, que aborda as relações pessoais e as convenções sociais, temas caros ao realizador, que este se juntou pela primeira vez a Olivia Colman, vencedora do Óscar de Melhor Atriz por “A Favorita”.
O realizador de 40 anos também ganhou um prémio em Cannes pelo argumento de “The Killing of the Sacred Deer”, em 2017, um filme inspirado numa tragédia antiga, que combina uma atmosfera arrepiante, absurdo e crueldade.
Os admiradores elogiam o seu talento para examinar as patologias do poder, criando um microcosmo à porta fechada que é simultaneamente obscuro e provocador. Mas também atrai críticos que, por vezes, descrevem a sua escrita cinematográfica como “pretensiosa”.