Saltar para o conteúdo principal

“O Riso e a Faca” de Pedro Pinho está na secção Un Certain Regard (Um Certo Olhar) do Festival de Cannes.

Podemos dizer, considerando a duração que o filme tem, três horas e meia, que isso não foi um problema?

Não foi um problema de todo. Quem tem o hábito de vir ao Festival de Cannes sabe que as pessoas têm uma agenda muito preenchida, que acontece muito as pessoas entrarem na sala para sentirem o filme e saírem passados 10 ou 15 minutos e posso garantir – quem esteve lá pode confirmar – que quase ninguém saiu da sala. Ficou toda a gente colada à cadeira até ao fim.

Faz sentido partilharmos também que os espectadores vão receber esta versão quando o filme estrear nos cinemas nacionais, mas há uma versão mais longa e tu estás interessado em exibí-la.

Sim, estamos à procura da situação ideal para exibir essa versão integral do filme com 5 horas e 20 minutos. É uma versão que tem uma dureza diferente desta, porque é uma proposta de cinema mais radical. Mas claro, esta será sempre a versão que irá circular na maior parte das situações e das salas de cinema.

Lembro-me de que quando o “Magnolia”, do Paul Thomas Anderson, estreou no Festival de Berlim, ele foi confrontado com a questão da duração, estamos a falar de três horas e meia. E ele disse que a vida como ela é merece um opus com essa duração.

Gostava de perceber, gostava de ter uma resposta tua para essa questão, por que é que sentes que precisamos desta duração para fazer esta viagem?

Bom, em primeiro lugar porque é de facto uma viagem, e as viagens requerem tempo, apesar de estar na moda ir ao espaço em 20 segundo. As viagens requerem tempo, porque requerem também uma deslocação emocional, intelectual, um mergulho numa outra realidade. Precisamos de deixar para trás a realidade de onde saímos para entrar na nova.

Para além disso, acho que há dois fatores que é importante pensar aqui.

Um deles é que, infelizmente, cada vez menos se vai às salas e, portanto, tem que se perceber como se reanima e se renova essa experiência da sala.

E outro que eu acho importante é que as pessoas acedem, veem objetos audiovisuais de durações cada vez maiores. As pessoas veem temporadas inteiras de séries na televisão. Nma tarde domingo, ou numa noite, ou em duas noites seguidas. Também me apeteceu brincar com essa ideia, de que, como assim, três horas e meia é muito? Se calhar da última vez que viste uma série estiveste mais tempo a olhar para o ecrã.

Então, como senti desde o início que o tema que estava a ser tratado tem uma complexidade muito grande era preciso algum cuidado no sentido de não descartar nenhuma das questões envolvidas nesse conjunto de temas abordados no filme.

Precisávamos de tempo para estar ali, ouvir, ver, ir atravessando o conjunto de perspetivas que o filme propõe.

E esse também é o teu tempo, obviamente, a viagem que é feita por este engenheiro que tem de preparar um estudo de impacto ambiental para uma estrada na Guiné, com todas as implicações.

Esse projeto obviamente vai afetar o modo de vida, a agricultura e a vivência nas pequenas aldeias, nas tabancas guineenses, aldeias com dezenas ou centenas de pessoas. Qual foi o tempo que demoraste para perceber aquilo que estava em causa no território?

Bom, a primeira vez que fui ao norte de Guiné-Bissau foi em 2010, portanto, há 15 anos.

Nessa altura, vi muitas das coisas que estão hoje no filme. Apercebi-me das questões e utilizei esse conhecimento, que é muito parco, mas que era o meu olhar sobre o que estava a acontecer à minha volta naquela altura. E utilizei isso tudo para a escrita.

Claro, depois as coisas ficam na gaveta, a marinar durante muito tempo. Só em 2017 é que iniciámos a escrita do projeto. E, finalmente, em 2022, conseguimos filmar.

E quanto tempo demoraste a filmar?

Estivemos seis meses de rodagem, foi uma rodagem muito longa. E durante a rodagem propusemos à equipa, e sobretudo ao ator que faz de engenheiro ambiental português, percorrer a viagem do filme pela primeira vez.

Portanto, todos os outros atores, a Cléo, o Jonathan, e obviamente todos os atores de Bissau também, tiveram a oportunidade de estar lá antes.

Nós fizemos uma viagem de reperagem, de reconhecimento, de trabalho, de ensaio com eles lá, para se apropriarem da linguagem, do modo de estar, da forma de viver, da forma de ser, apesar de serem personagens que também têm um deslocamento.

A Diara tem pai cabo-verdiano e mãe guineense, portanto está deslocada ali. Cresceu em Cabo Verde e voltou a certa altura para Bissau.

O Jonathan é brasileiro e foi para Bissau à procura um bocadinho de si mesmo, como descreve no filme.

São três personagens em deslocamento, mas o Sérgio, queria que ele fizesse a viagem pela primeira vez durante a rodagem. Isso foi uma coisa muito bonita também de se ver, perceber o filme a passar na retina do Sérgio.

Não era só na câmara que acontecia, era no próprio reflexo nos olhos do Sérgio. O Sérgio via aquilo tudo pela primeira vez.

Na apresentação, referiste que este problema persiste e falaste de um grupo de mulheres que, neste momento em que o filme é apresentado no Festival de Cannes, estão detidas na Guiné. Podes contextualizar, por favor?

Elas, entretanto já foram libertadas, mas estão com um processo judicial gravíssimo. São acusadas de terem incendiado máquinas de uma empresa mineira internacional, julgo que pelo menos parcialmente chinesa, que na realidade chegou ao território para negociar a sua presença com as comunidades no primeiro dia de rodagem que tivemos ali.

Nós percebemos logo isso. Havia uma história anterior de 2015, julgo eu, de uma empresa russa que tinha estado a minerar a mesma praia, que foi expulsa pela comunidade.

Era uma história que se contava e que nos animava muito.

Esta empresa instalou-se. É uma mineração muito agressiva, porque polui as águas. Acho que a comunidade de Nhinquin teve mesmo de se deslocar. E agora elas estão neste processo. É uma coisa gravíssima que está a acontecer.

Conhecemos isso também de Covas de Barroso, mas na Guiné é mais grave, no sentido em que, pelo menos na Europa, ninguém está a par do que é que se está a passar.

E essa é uma questão generalizada, a questão da exploração dos minérios. Vamos descobrindo, muitas vezes também através do cinema, que há cada vez mais focos e locais onde as pequenas comunidades são muito importantes para tentar preservar o ambiente, ou resistir a essa exploração que é colonial. E, no fundo, o teu filme é sobre este problema e proponho um pensamento sobre isto.

Sim, estamos completamente dentro do centro do filme, é sobre essa relação neocolonial da Europa com o resto do mundo. E sim, é verdade, estou sempre um bocado a dizer isto nestas conversas, mas tenho a sensação de que estamos num comboio de alta velocidade a dirigir-se para uma parede, ou para um abismo, toda a gente percebe, toda a gente vê a parede, toda a gente percebe que vai correr mal, mas ninguém sabe, ou ninguém quer puxar o travão.

Portanto, o papel destas comunidades é fundamental, dependemos delas para ter planeta no futuro, dependemos delas para ter humanidade no futuro, para deixar de sentir que provavelmente os nossos filhos que estão a nascer agora podem ser uma das últimas gerações de seres humanos.

Isto é de uma gravidade brutal, por isso temos de dar força a essas comunidades que resistem a este processo.

É um filme português num espaço lusófono que reúne, como dizias há pouco, pessoas que estão do Brasil, pessoas com origens cabo-verdianas, um português que regressa, como muitos vão regressando para lidar com esta questão económica de desenvolvimento. No entanto, o que me parece aqui, onde o filme está a ser exibido, no Festival de Cannes, é que é claramente um filme africano. O que pensas sobre isto?

Creio que é um filme feito por uma pessoa europeia, obviamente rodado em território africano, mas é um filme sobre um problema europeu. E é assim que eu acho que é importante que seja visto.

É um filme sobre uma ideologia que se chama Europa, não enquanto instituição política social, não enquanto geografia, mas enquanto ideologia. E o problema dessa ideologia se continuar a impor ao resto do mundo.

O Festival de Cannes tem procurado, enfim, na seleção oficial, também na secção Un Certain Regard, onde o filme surge, encontrar narrativas de cinema genuinamente africanas.

Gostava de perceber que papel é que o teu filme pode cumprir desse ponto de vista. E também na perspetiva de uma cinematografia emergente, mais pequena, como é a da Guiné-Bissau.

Mais uma vez, acho absolutamente fundamental que comecem a descobrir cinematografias menos centrais, menos imperiais até. Mas não é o caso deste filme. Ou seja, temos de olhar para outro lado para ir à procura disso. Não basta olhar para este filme.

Este filme é produzido por Portugal, pela França, pelo Brasil e pela Roménia. E nós temos de ir à procura dos outros filmes que são fundamentais e que foram absolutamente fundamentais também para criar este olhar, o meu olhar sobre esta realidade.

Ou seja, tudo o que é feito na Guiné-Bissau, o Flora Gomes, o Sana Na N’Hada, o Falcão Nhaga, o Welket Bunguê. Todos esses realizadores, todos esses olhares, temos de lhes dar muita atenção e eles. No meu caso, com certeza formaram de uma maneira incrível o meu olhar. Ou seja, vejo sem parar “Os Olhos Azuis de Yonta”, vejo sem parar os filmes do Sana e do Flora Gomes.

  • tiago alves
  • 18 Mai 2025 21:33

+ conteúdos