

Jafar Panahi em Cannes: “Pôr um artista na prisão é dar-lhe ideias”
O cineasta iraniano regressou a um festival internacional após ter estado proibido de viajar durante 15 anos. O autor de "Um Simples Acidente" desafiou as autoridades iranianas ao declarar que elas devem "aceitar as consequências" das suas ações e explicou que a repressão é uma fonte de inspiração para os artistas.
“Quando a República Islâmica prende um artista, (…) dá-lhe material, ideias”, afirmou na quarta-feira, em Cannes, o cineasta dissidente iraniano Jafar Panahi, um dos favoritos à Palma de Ouro, e as autoridades devem “aceitar as consequências”.
“No que me diz respeito, é absurdo e surrealista”, disse Panahi na conferência de imprensa após ter apresentado o seu filme “Um Simples Acidente”, que assume a forma de um desafio às autoridades.
A longa-metragem baseia-se nas histórias de prisioneiros políticos que passaram décadas na prisão e com os quais Jafar Panahi, duas vezes preso no Irão (86 dias em 2010, quase sete meses entre 2022 e 2023), partilhou durante algum tempo uma cela coletiva.
“Como é possível colocar um artista na prisão e não perceber o que isso significa?”, perguntou. “Quando se coloca um artista na prisão, está-se a dar-lhe algo com que trabalhar, algumas ideias, está-se a abrir-lhe um mundo totalmente novo”.
“‘Um simples acidente’, não fomos nós que o fizemos, foi a República Islâmica”, continua o realizador de 64 anos.
“Com as possibilidades tecnológicas que existem hoje em dia, nenhum poder pode impedir um artista de trabalhar”, acrescentou, salientando que o seu co-argumentista Mehdi Mahmoudian, que foi detido, sairá “da prisão com dezenas de ideias de guião”.
Jafar Panahi disse que a situação “se tornou mais complicada” quando a sua seleção para Cannes foi anunciada em abril e vários membros da sua equipa foram detidos. Apesar da pressão, “éramos nós que tínhamos a carta vencedora porque o filme existia”. “Não havia mais nada que pudessem fazer”, concluiu.
Após ter estado proibido de viajar durante 15 anos, Panahi disse que vai regressar imediatamente ao seu país depois do festival, para começar a trabalhar no seu próximo filme.
O realizador de 64 anos foi proibido de fazer filmes ou viajar para o estrangeiro na sequência da condenação por “propaganda contra o sistema” em 2010. A pena foi recentemente revogada.
Apesar da proibição de viajar e das múltiplas passagens pela prisão, Panahi disse que fazer filmes não o colocou em maior perigo do que as ações de outros iranianos. “Todos os dias, há uma restrição sobre o véu, todos os dias há um problema, mas vemos mulheres a sair sem véu. Não é perigoso?”, questionou Panahi. “Assim que o festival terminar, na noite seguinte estarei em Teerão”, disse o vencedor de vários prémios internacionais, incluindo o Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim 2015 pelo filme “Taxi”.
Apesar de também estar autorizado a voltar a filmar, Panahi disse que a forma como faz filmes não mudou, pois não segue as regras do governo, como submeter o argumento para aprovação.
Panahi disse que o facto de ter estado na prisão influenciou o filme, mas que ele próprio não viveu todas as histórias nele contadas.
“Um Simples Acidente” segue Vahid, interpretado por Vahid Mobasseri, que rapta um homem com uma perna falsa que se parece com aquele que o torturou na prisão e arruinou a sua vida. É uma entre 22 longas-metragens que competem pela Palma de Ouro de Cannes, um dos mais prestigiados prémios do cinema mundial, cujo vencedor será conhecido no próximo sábado.