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O realizador português Gabriel Abrantes apresenta-se pela primeira vez na competição oficial do Festival de Cannes após duas presenças nas secções paralelas, primeiro com a curta-metragem “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra” (Quinzena dos Cineastas) e depois com “Diamantino” (Semana da Crítica) onde recebeu o prémio de melhor longa-metragem.

Desta vez, com a curta-metragem “Argumentos a Favor do Amor” uma animação com as vozes de Inês Castel-Branco e Jack Haven que inclui discussões de um casal, tiradas da vida, entre fantasmas.

Gabriel, um regresso a Cannes com uma curta-metragem, numa programação obviamente muito especial para o cinema português, imagino que também o seja para ti, gostava de ter as tuas impressões sobre isso, o que significa voltar com uma curta-metragem após teres sido premiado com uma longa.

É a primeira vez que estou na competição oficial e é o palco mais importante para o cinema, independente, de autor, por isso estou muito feliz, fiquei com muito orgulho de terem selecionado o filme para estar em competição oficial.

E um possível prémio terá um significado especial, enfim, pensando nos prémios que já recebeste com os filmes anteriores, é um prémio para uma curta, mas é uma Palma de Ouro. Quais estão os teus pensamentos sobre isso?

Claro, é um dos prémios mais importantes do mundo do cinema para curtas-metragens e a competição oficial é o palco mais importante para o tipo de cinema que eu gosto e que faço. Por isso, claro que significa imenso, teria imenso orgulho, mas também não fico à espera de nada porque nunca se sabe. Mas é um filme que me é muito próximo, é muito pessoal e estou muito feliz de poder mostrá-lo.

Gostava de perceber como o desenvolveste, porque não passa propriamente pelo percurso habitual de financiamento. Fazes uma primeira versão que depois é concluída com o apoio do ICA… e o que te motivou a voltar a uma curta-metragem?

O filme começou com um convite do CAM (Centro de Arte Moderna), da Gulbenkian, para fazer uma obra, por isso foi uma encomenda de uma obra e queriam que eu fizesse um filme. Comecei a pensar o que queria fazer como filme e pensei em várias discussões, discussões muito curtas, discussões de dois minutos. Queria retratar um bocado a divisão cultural que temos hoje em dia, a fúria que vemos tantas vezes nas redes sociais de uma extrema-direita contra uma extrema-esquerda e imaginei, por exemplo, uma pessoa de extrema-direita a discutir com uma pessoa de extrema-esquerda, mas os diálogos estavam muito, muito artificiais, quase como se estivesse a inventar estes discursos.

Depois, comecei a experimentar, a utilizar alguns diálogos tirados da vida quotidiana ou coisas que ouvia, ou discussões que eu próprio tinha e comecei a ver que estas questões também estavam incluídas nessas discussões, mas que tinham toda outra camada de sentimento, de tragédia, de melancolia, de dor e daí desenvolvi uma instalação que tinha vários ecrãs e depois, sempre pensei fazer uma versão em formato de curta-metragem. Consegui remontar essas discussões todas numa espécie de arco narrativo sobre um casal que está com um trauma grande e numa espécie de eternidade de discussões.

O que nos leva para a ideia da assombração. Isso permite, do ponto de vista visual, desenvolver uma temática de género, como um filme de fantasmas, ele tem esse imaginário muito bem definido. Imagino que tenha dado particular prazer voltar a fazer uma história tão especificamente de género.

Sempre adorei o fantástico no cinema e nas artes plásticas e adoro o cinema de ação, adoro o cinema de terror, o cinema fantástico. Os filmes de que mais gosto têm sempre um lado completamente inesperado, que se afasta muito do real, de alguma maneira, mas para falar sobre o nosso mundo.

A animação sempre me apaixonou, adoro a Pixar, adoro os primórdios da animação, os Fleischer Brothers, a Minnie The Moocher da Betty Boop e pouco a pouco tenho começado a desenvolver uma parceria com o estúdio da Irmã Lúcia. Trabalhamos desde algumas das curtas, depois fizemos o “Diamantino” juntos, depois fizemos as curtas com alguma animação, o “Artificial Humors” e depois a “Jeune Fille de Pierre”, sempre filmando com décores naturais, mas depois com um personagem animado.

Esta é a primeira curta que nós fazemos que é 100% em animação e que também possibilita ter este lado fantástico, com paisagens completamente inventadas, surrealistas e depois personagens também que não são pessoas, são fantasmas. E foi realmente um prazer poder trabalhar nessa realidade paralela.

Há pouco falavas das eternas discussões e do lugar onde está este casal na relação que se estabelece, mas também das preocupações. É um filme, de certa forma, também sobre este tempo, sobre o Apocalipse. Defines-te como um eco-ansioso, isso é algo que te preocupa excessivamente?

Acho que há várias ameaças existenciais à vida e à espécie humana. As duas principais são a crise climática e depois a inteligência artificial e como ambas podem afetar a política e a geopolítica global, ou seja, quando começa uma corrida de inteligência artificial entre a China e os Estados Unidos e a Rússia, acho que vai rapidamente escalar numa espécie de guerra fria bastante complicada.

Este filme fala sobre essas coisas, ou seja, as paisagens são completamente devastadas por furacões, por fogos, como nos telejornais estamos habituados a ver, no meio da Alemanha, cidades inteiras alagadas, na Espanha, em Valência, na Califórnia e na costa portuguesa, fogos cada verão mais violentos. Por isso, é uma coisa que se está a naturalizar de forma um bocado estranha, estamos a habituar-nos cada vez mais a esta ameaça.

E depois, a inteligência artificial, ainda parece um bocadinho uma piada, de alguma maneira, porque vemos muitos erros que ainda fazem os ‘bots’ do GPT, mas estou bastante dentro dessa pesquisa e é realmente assustador.

Há uma previsão de que em 2027 já todos os trabalhos são feitos por inteligência artificial, esta é uma previsão feita por um coletivo de 10 cientistas, saiu agora. Se daqui a dois anos toda a gente perdeu o trabalho, incluindo pessoas que fazem trabalho que não é no computador, pessoas que servem às mesas, a previsão é que isto avança tão rápido que robôs físicos já estão a fazer esse trabalho nessa altura.

É uma visão claramente apocalíptica porque é uma desestabilização completa da realidade como nós a conhecemos que vai criar uma instabilidade psíquica, psicológica, emocional em todos.

E o filme fala um bocado sobre isso porque é um filme 100% feito no mundo digital, os fantasmas são digitais, as paisagens são digitais e há uma teoria que é Dead Internet Theory, a teoria da Internet morta, que é, por exemplo, havia uma página no Facebook há 10 ou 15 anos que foi inventada para fazer um protesto contra a Wall, quando o Facebook lançou a Wall, que eu nem sei bem o que é, houve muita gente a dizer, a Wall é péssima, não gosto, etc. mas de repente ‘bots’, uns agentes automáticos de empresas para fazer publicidade, começaram a aparecer.

Pouco a pouco as pessoas desapareceram dessa página e hoje em dia é só habitada por de robôs de publicidade automáticos a fazerem publicidade uns para os outros, uma página de uma rede social que está completamente habitada por ‘bots’.

E eu também via este mundo destes fantasmas um bocado como uma espécie de Dead Internet, uma simulação virtual de discussões humanas, mas quando os humanos já não estão por perto, que também é uma visão bastante distópica e apocalíptica de um futuro possível.

Sim, há essa desumanidade, mas, ao mesmo tempo, também sinto que o filme se organiza e evolui do ponto de vista do pensamento com discussões que são do quotidiano de um casal, de amigos, entre família, mas as preocupações não são tão banais quanto isso, e é um reflexo, de certa forma, do nosso nível de preocupação, do nosso estado de saúde mental.

O filme tanto fala destas preocupações mais globais ou políticas, como a crise climática, ou o impacto da inteligência artificial, mas depois os temas discutidos pelos personagens são temas muito humanos, são temas sobre perda, sobre amor, sobre trauma, sobre doença, todos nós passamos por isso, toda a gente eventualmente perde um familiar próximo e tem esse trauma, e temos discussões sobre isso e discussões que, por vezes, não conseguimos resolver.

Era um bocado a razão do título, “Argumentos a Favor do Amor”, é porque são discussões que não se resolvem e espero que o filme aponte para querer resolver essas discussões.

Nós vivemos num mundo que está cheio de ansiedade, de crueldade, de dor, e acho que o que precisamos cada vez mais é do amor e da compreensão e da empatia. Acho que, cada vez mais, estamos num mundo que está a impossibilitar a empatia de forma geral, generalizada, cada vez mais estamos distanciados pelos meios de comunicação, das redes sociais, de uma espécie de anonimato desumanizado, através da nossa vivência digital.

E eu vejo isso, as pessoas cada vez menos sabem falar umas com as outras, cada vez menos sabem perdoar umas às outras, cada vez menos sabem amar de forma mais simples, estão numa espiral de toxicidade e de ansiedade alimentada por algoritmos feitos para isso, para viciar as pessoas nas próprias redes e se o filme quer dizer alguma coisa é apontar para um caminho diferente.

  • tiago alves
  • 26 Mai 2025 15:15

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