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11 Jul 2025

“Lindo” é o protagonista da primeira longa-metragem realizada por Margarida Gramaxo. Está em exibição nos cinemas, um filme rodado em Príncipe que acompanha a mudança na vida de um antigo caçador de tartarugas marinhas na Ilha do Príncipe.

Margarida, é a tua primeira longa-metragem, um filme amadurecido durante vários anos, mas há outros papéis que desempenhas no cinema. Podes falar-nos um pouco disso?

Sim, comecei a trabalhar no cinema em produção e neste momento estou a fazer argumentos também, estou a escrever. Estou a deixar a produção a pouco e pouco e a conseguir concentrar-me mais na realização e na escrita.

Esta viagem que fazes ao Príncipe é uma viagem demorada, no tempo, que implicou diversas descobertas. Estamos a falar com exatidão de uma década?

Sim, ouvi-lo dito assim até custa, mas é verdade. Tive a primeira ideia para fazer o filme em 2014, mas só consegui ir ao Príncipe pela primeira vez em 2016. Entre 2016 e 2021 fiz seis viagens. As três primeiras para pesquisar, para pesquisa. As três últimas já com a equipa definitiva do filme para captar as imagens que pudemos ver no filme. Depois de 2021 ainda tive a pós-produção, depois o lançamento e agora aqui nos encontramos para as salas de cinema.

Aquilo que encontras no início é muito diferente do que acabas por pôr na narrativa? Qual é o teu primeiro olhar quando contactas com esta realidade?

Mal cheguei ao Príncipe, vim do aeroporto até à cidade e percebi que aquela estrada tinha de estar no filme. Mas eu ia à procura de histórias, de várias histórias, ia conhecer o território, ia tentar perceber de que forma é que os anos tinham tido influência no desenvolvimento da ilha.

Havia um projeto de investimento de um sul-africano, Mark Shuttleworth, que estava em processo. Era um projeto de investimento muito tentacular, que tinha investimento em infraestruturas, em educação e em conservação da natureza, para além do investimento em hotelaria e turismo. E eu sabia que a ilha estava em ebulição por causa disso, ia mudar muito.

Na minha primeira viagem não fazia ideia de que tipo de filme ia fazer, na segunda também não. Na terceira viagem já tinha três histórias diferentes em mente. Portanto, quando fiz a quarta viagem com a equipa já tinha o guião, já tinha tudo preparado e já sabia que ia ser uma história sobre o Lindo. Ou seja, demorou. Fui pela primeira vez ao Príncipe em 2016, idealizei a história, mas só em 2020 é que sabia exatamente qual a história que ia contar.

E a história é obviamente centrada no Lindo, numa perspetiva documental. Quem é o Lindo?

O nome do Lindo é Manuel da Graça, Lindo é o nome de vulgo dele, pelo qual ele é conhecido na ilha. Sempre viveu na ilha do Príncipe e, no passado, era caçador submarino, caçava tartarugas entre outros seres marinhos, mas as tartarugas marinhas eram a sua principal fonte de subsistência.

Com o passar dos tempos, o Lindo viu-se forçado a mudar o seu estilo de vida, a viver de outra forma. E isto tudo começou quando um biólogo português da Universidade do Algarve, que tinha um programa para estudo da tartaruga assada, chamada, é a tartaruga de Pente, também localmente chamada tartaruga Sada.

Nesse trabalho, o biólogo entrou em contacto com os caçadores submarinos e pediu-lhes ajuda para apanhar as tartarugas, estudar as tartarugas, tirar amostras de sangue, marcar as tartarugas e voltar a libertar as tartarugas no mar. Foi nesse trabalho que o Lindo desenvolveu uma relação emotiva com o animal. Além disso, em 2019, passou a ser proibido caçar tartarugas.

O Lindo teve de encontrar outro meio de subsistência e começou a trabalhar em conservação da natureza. Trabalhava nesta empresa do milionário sul-africano que estava a desenvolver o projeto de desenvolvimento sustentável na ilha.

Ele tem um momento em que toma consciência, digamos assim, em que muda a relação com outra espécie, concretamente com a tartaruga, que é distinto do momento em que surge legislação para proteger as tartarugas selvagens, correto?

Correto. Não foi uma grande diferença de tempo, foi quase a par e passo, porque a legislação foi aprovada de forma muito rápida no Príncipe. Portanto, o lindo primeiro desenvolve esta relação, começa a olhar para o animal de outra forma, percebe que o animal também o perceciona, não é? Logo a seguir, acaba por vir a legislação.

Nunca perguntei ao Lindo, se hoje em dia fosse permitido caçar tartarugas, será que ele caçava tartarugas? Eu acho que não.

Era uma questão que estava a tentar perceber. No fundo, se essa consciência decorre também, obviamente, uma alteração das práticas, digamos assim. E é uma prática generalizada, ou seja, a proibição de caçar tartarugas é hoje uma prática generalizada em São Tomé e Príncipe?

Sim, eu estou mais a par do que se passa no príncipe. Em São Tomé, creio que foi uma legislação posterior. Focando-nos no Príncipe, foi um decreto legislativo regional específico de 2009, que é uma contraordenação, passou a tipificar a caça às tartarugas marinhas como uma contraordenação com direito a pagamento de uma multa e outras sanções acessórias. Há fiscalização na ilha e há esse cuidado, é proibido e muito vigiado.

O Lindo trabalha nessa fiscalização, aliás o filme mostra essa realidade, ainda há pessoas que apreciam muito a carne de tartaruga e que a procuram. Por isso, também há caçadores que ainda a apanham furtivamente. Mas o que o Lindo nos diz é que se eu vejo a fazer mal uma tartaruga é como se estivessem a magoar um irmão meu. É o ponto em que o Lindo se encontra agora.

O filme abre uma realidade que é também económica. É necessário perceber como as pessoas se adaptam a um novo modo de vida, porque viviam da caça. Sentes que o programa foi eficaz do ponto de vista do envolvimento da comunidade, das pessoas que necessitavam de caçar por sustento, ou para ter rendimento?

É uma pergunta difícil. Diria que a eficácia do programa foi grande, mas temos no filme pessoas que se sentem ainda hoje injustiçadas.

E eu, claro, aproveitei o filme para lançar esse debate, para não permitir que esse debate morra, porque vamos perceber que há um grupo de caçadores submarinos que sente que não teve o apoio suficiente. Como é usual neste tipo de situações, é uma tensão muito frequente.

Aliás, percebi que tinha uma história quando o Lindo foi muito claro e me disse, salvo erro em 2016, que ganhava menos a trabalhar em conservação do que quando era caçador de tartarugas. Foi aí que percebi que tinha uma história, que havia uma história.

E o Lindo vem de um lugar de privilégio, porque num terreno, tem terras, como se diz, no Príncipe tem uma roça. Consegue complementar o ordenado do trabalho em conservação da natureza com a venda de alimentos. Isso permitiu ao Lindo fazer esta transição de uma forma muito harmoniosa. E nós vemos no filme que não foi o caso de todos os seus colegas, de todos os parceiros de caça submarina do Lindo e também de gerações mais novas que ainda hoje caçam furtivamente.

Ou seja, o problema persiste para além do tempo e da narrativa que tu propões no documentário sobre o Lindo.

Sim, porque eu acho que o trabalho destes programas, das ONGs e do governo regional é muito no sentido de educação das novas gerações. É aí que está a grande aposta. Porque são as novas gerações que se vão habituar a não comer tartaruga. Que vão imaginar que a caça à tartaruga já não é uma forma de subsistência. Já vão definir a sua vida com esta impossibilidade de ter as tartarugas como forma de subsistência.

O Lindo, desse ponto de vista, é também inspirador. Sentes que é agente de mudança pela prática, dadas as circunstâncias, mas apresentando-o de uma outra forma e numa outra dimensão. Ele é pastor de uma igreja. Vemos isso no filme. Através da igreja, tem também o dom de influenciar a comunidade?

Sim, também. Só descobri que ele era pastor num dia em que ele me convidou a ir à sua igreja. E aí eu percebi e disse-lhe que aquilo também era importante. O Lindo utiliza a igreja para passar a sua mensagem, mas fora da igreja o Lindo também é muito respeitado. Acho que tem a ver com a idade. Ele é um agente muito importante na comunidade.

Achei extremamente interessante perceber que não só o Lindo passa a sua mensagem, como os outros pastores também. Não fazia ideia e, na primeira sessão a que fui, vi que um dos pastores pregava pela proteção do ambiente e pela necessidade de haver proteção, para que os investimentos estrangeiros respeitassem o meio ambiente da ilha. Acho muito interessante. O Lindo e os outros pastores usam muito a igreja para canalizar essa mensagem de valorização dos recursos naturais da ilha.

Até que ponto o que se passou no Príncipe é apenas um exemplo, ou pode ser posta em prática noutros locais? Qual é a tua impressão?

Eu acho que é um exemplo que tem que servir de debate e de case study, para percebermos o que corre bem e o que não corre tão bem, e como podemos melhorar noutros sítios.

Se formos escalando para uma visão mais macro, vamos ver que tivemos em Portugal questões relacionadas com cotas, se formos ver bem a questão energética a nível mundial, também somos todos nós a não querer voltar atrás, a querer manter o nosso estilo de vida à custa dos recursos do nosso planeta. Portanto, acho que sim, que o que se passa ali é só um exemplo do que acontece em tantos locais no mundo.

  • tiago alves
  • 11 Jul 2025 10:50

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