

“Paraíso”: viagem às origens da música eletrónica em Portugal
O documentário realizado por Daniel Mota mergulha nas raízes da música eletrónica portuguesa, revisitando as vibrantes raves dos anos 90 através dos testemunhos de DJs, bailarinos e produtores que moldaram um movimento cultural único.
“Paraíso” é um documentário que nos transporta até às primeiras raves portuguesas, até às origens da música eletrónica em Portugal, um fenómeno que marcou a cultura musical dos anos 90 do século XX. Contar a história e do início da música eletrónica em Portugal, a partir dos próprios intervenientes, está na génese do filme. Daniel Mota não pôde recusar a proposta de realizar o documentário:
A ideia surgiu do João Ervedosa e da Maria Guedes, que tinham um programa na Rádio Quântica onde faziam várias entrevistas com vários intervenientes, de várias alturas da música eletrónica, da música de dança em Portugal.
Em fins de 2014 e inícios de 2015 tiveram a ideia: “estas histórias são todas tão boas, alguém tem que contar isto num formato documental”.
O João trabalha comigo e lançou-me o desafio de filmar estas entrevistas. Na altura, a minha grande alteração do conceito inicial que eles tinham na Rádio Quântica, que era um conceito de entrevista normal, foi colocar os DJs em parelha com outros DJs, porque há muita tradição dos back-to-backs, a ideia de dois DJs a fazerem o mesmo set – põem uma canção, põem outra canção, têm esse diálogo entre eles musicalmente e achei interessante tentar recriar esse diálogo no formato de entrevista e conversa.
Também para tentar que a entrega deles fosse diferente do que seria numa entrevista normal, porque acaba sempre por se tornar uma conversa entre duas pessoas que se conhecem há 20 anos, “lembras-te de não sei quê e quando foi aquilo, e não sei quantos”.
Claro que isto resultou em entrevistas longuíssimas, temos entrevistas de 3 horas e meia em que se aproveitam 20 minutos, porque as pessoas divagam e dispersam.
Tal como no remix musical, as entrevistas e as imagens de época vão-se interligando ao ritmo dos acontecimentos. Em “Paraíso”, Daniel Mota mostra como de forma simples e natural surgiu a música eletrónica em Portugal, a partir da paixão de um grupo de jovens:
Parece um enredo hollywoodesco porque são os miúdos que estão juntos, têm acesso a umas tecnologias, têm interesse numas certas músicas, alguns deles trabalham em lojas de discos, logo têm acesso a muito mais música.
Estes miúdos que tinham a paixão pela música nova e queriam fazer algo diferente, começam a juntar-se, a falar uns com os outros, começam a querer fazer umas coisas em grande… De repente, numa lógica puramente ‘do it yourself’, fazem eles mesmos as raves e aí é que sim, é uma coisa absolutamente inacreditável, em que eles viram um castelo do avesso para fazer lá uma festa durante três dias.
E é difícil contar esta história de uma forma que não seja cronológica, porque é um espanto atrás do outro.
Ou seja, estamos a ver aquilo é pá, como assim eles fizeram aquilo num castelo? É pá, como assim esta canção que tocou antes na cave deste rapaz, de repente chegou a ser uma das canções mais tocadas de sempre do Sound Factory em Nova Iorque.
Como é que depois ainda chegou mais longe, ainda se fez mais e estabeleceu-se uma cultura grande que ainda hoje existe, de música de dança e de sair à noite para ouvir música de dança em Portugal?
No documentário “Paraíso”, o realizador Daniel Mota, reuniu 38 entrevistas feitas a DJs, bailarinos e produtores, envolvidos no processo de criação de uma nova tendência musical:
Das grandes figuras da altura, que ainda hoje, muitos deles tocam e fazem festas por esse país e por esse mundo fora, na verdade, um ou outro promotor, como o Miguel Marangas, temos o DJ Vibe, claro, e o Rui da Silva, a parelha que fez o “So Get Up”, que foi o grande exito da altura.
Depois temos curiosas aparições internacionais, como o Danny Tenaglia, que era um DJ forte da altura, o Rob Di Stefano – ele próprio confessa que na altura ficou muito impressionado com o que se estava a fazer em Portugal. Também temos os Alcantara Dancers, mas todas as pessoas que aparecem eram pessoas que faziam parte do movimento e estavam lá naquela altura. Tentámos ter aqui uma amostra grande das pessoas que fizeram parte e que criaram este movimento.
Lux, Kadoc, Alcântara-Mar, Kremlin e Vaticano são alguns dos templos da música eletrónica recordados. Imagens do Rocks no Porto também foram incluídas. Os arquivos a que tiveram acesso foram um contributo determinante, reconhece o realizador:
Ao longo do tempo fomos encontrando várias cassetes, vários arquivos pessoais que nos foram sendo cedidos e uma das últimas coisas que encontramos foi uma série de fotografias de um fotógrafo chamado Da Fonseca, que era um fotógrafo bem amador, que, na altura, corria todas estas festas e tinha um espólio quase infinito de imagens que ainda nem sequer tinham sido reveladas.
Foram reveladas por nós para o filme e o grande arquivo, o grande sustento fotográfico e o grande arquivo fotográfico do filme vem desta fonte tardia, que só surgiu em 2023, salvo erro, e à medida que as coisas se sucederam, fui sempre dizendo ainda bem que não fizemos o filme antes, ainda bem que só o fizemos agora.
São apresentados os testemunhos daqueles que viveram na primeira pessoa, este movimento underground. Esta é a linha narrativa escolhida por Daniel Mota para o filme “Paraíso”:
É um bocadinho parte da criação. Ou seja, é a forma como nós fazemos o filme, a perguntar às pessoas que estavam dentro do fenómeno, a não ter nenhum interveniente externo, faz com que também esteja espelhado nos depoimentos e nos testemunhos das pessoas o que é que eles viam de dentro.E para eles aquilo era uma avalanche onde eles estavam presos e eles não estavam a pensar isto aqui vai ser uma subversão. Eram miúdos de 20 anos que nem sabiam bem o que lhes estava a acontecer e que foram levados por aquela onda e que surfaram aquela onda e de repente a onda esbateu-se. Espalhou-se. A cultura massificou-se. Deixou de ser underground.
Eles próprios anseiam e têm saudades daqueles tempos, mas percebem que viveram e fizeram parte de um momento único na cultura em Portugal onde várias pessoas se juntaram para criar uma coisa com muita qualidade e com muita capacidade. É genuinamente impressionante e acho que é uma história que acaba por ser relevante lembrar. Temos aqui um exemplo em que a cultura não teve apoio absolutamente nenhum, mas fez por ela. E fez bem.
O radialista e realizador Daniel Mota teve o cuidado de no documentário Paraíso dar destaque às origens do tema “So Get Up” conhecido internacionalmente e que é português:
O que é incrível no “Dance With Me” e no “So Get Up” é que o “Dance With Me” era ao lado A. Era suposto ser o single e era suposto ser a canção que ia bater e que ia funcionar em todo o lado. E é o “So Get Up”, que era ao lado B que era a canção que eles tinham menos esperança, que acaba por ser o grande êxito dessa parelha de canções.
Acabámos por explorar bastante o fenómeno dessa canção que foi muito além-fronteiras e tocou em todo o lado e mais algum porque é um dos pontos de que todos os entrevistados falam. É incontornável na história da música eletrónica e na história da música portuguesa. E é bom ouvir de várias pessoas dizerem que é inacreditável, que não faziam ideia que isto tinha acontecido.
Nos anos 90, Portugal era uma referência da música eletrónica. Conhecido pela liberdade de realizar raves era considerado um paraíso. Daí o título do documentário, revela Daniel Mota:
Portugal, a dada altura, acaba por ser mencionado internacionalmente como um paraíso e é daí que vem o nome do filme. Era um paraíso chamado Portugal onde tudo era legal. Era o que diziam de nós. Não era bem tudo legal, mas se calhar comparativamente com outros países onde o fenómeno já não estava no seu início em Portugal ainda muita coisa era legal que se calhar não era suposto ser, mas nós ainda deixávamos que tudo acontecesse.
“Paraíso” fez sucesso na apresentação no Indie Lisboa. O realizador Daniel Mota está orgulhoso do trajeto do filme:
Não há assim tantos documentários que tenham a sorte que tivemos de estrear em grande e de chegar a muita gente como nós chegámos. Tivemos sorte de ter tocado num assunto que havia um nicho alargado que o quis ver e a verdade é que o tipo de pessoas que acabam por ver o filme têm uma abordagem muito curiosa no fim do filme que é “tu retrataste ali os melhores anos da minha vida” e acho que isso é uma coisa que nos orgulha imenso porque, para mim, naqueles anos eu estava a aprender a caminhar e a falar, para mim aquilo não existiu, mas fico alguma nostalgia desse tempo que não vivi.