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06 Nov 2025

Arménio e Hermínia são duas personagens interpretadas por Mina Andala e José Martins no filme “A Memória do Cheiro das Coisas”, de António Ferreira. Após exibição em festivais internacionais, no Brasil, em Marrocos e também na China, chega aos cinemas portugueses. O CINEMAX conversou com o realizador.

António, vamos perceber, através desta conversa, que o cinema ainda não cuidou devidamente das memórias do período colonial:

É verdade. Acho que é um tema que continua por conversar plenamente na sociedade portuguesa. A mim interessava-me, sobretudo, falar destes homens, onde é que eles estão atualmente. Portanto, não me interessa tanto a guerra colonial lá atrás. Interessa-me falar destes homens 50 anos depois, agora na casa dos 80, e onde é que eles estão e como a guerra, de alguma forma, ainda os assombra.

Acho que se impôs um grande silêncio nestes ex-combatentes, durante estes 50 anos. Não se falou devidamente do assunto. Aliás, acho que eles foram os primeiros a não querer falar sobre isso. E essas coisas ficaram assim guardadas no peito destes homens, que foram enviados para a guerra com 20 anos, que é uma coisa hoje impensável para nós.

Nós que temos filhos, pensar que aquilo que se segue não é uma faculdade, ou trabalho, mas uma ida para a guerra. E quando a guerra terminou, simplesmente voltem lá para a vossa casa, sigam com a vossa vida, desenrasquem-se e nunca ninguém lhes estendeu a mão.

É esse momento em que a vida se apaga que está ligado à personagem do Arménio porque ele está nesse outono da vida.

Sim, o filme passa-se praticamente todo num lar, tirando uma cena. E a ideia foi também mergulhar dentro deste universo, dos lares de terceira idade. Enfim, quem tem pelo menos 40, 50 anos, como é o meu caso, já passou por isso de alguma forma, através dos pais, ou através dos avós.

Inicialmente pensava que o filme poderia ser mais interessante para esta faixa etária, e tenho visto bastantes jovens. Tivemos uma sessão no Barreiro, no Festival Entre Olhares, onde tínhamos uma plateia, literalmente, dos 15 aos 80, e temos tido reações muito emotivas no final do filme, com pessoas em lágrimas, e tanto são os jovens que nos falam, como o pessoal da casa dos 50, como eu.

Neste caso também tínhamos imensos antigos combatentes na plateia que começaram a falar, às vezes, de coisas íntimas da sua experiência. Fiquei surpreendido, como ali, no meio de tantos estranhos, numa plateia de uma sala de cinema cheia, abordavam coisas tão íntimas. Isso fez-me pensar que talvez se tenham sentido compreendidos ao ver o filme, se tenham se sentido refletidos de alguma maneira.

Quando recebes uma menção honrosa, no festival de Tanger, dizes que este é um filme sobre aprender e ver o outro. Isso é muito importante porque é um filme sobre um espaço, como dizias há pouco, muito focado na relação entre duas pessoas que adensam o conflito emocional despertado pelas memórias do período colonial. Uma africana, uma assistente, que dá apoio a Arménio, o veterano da guerra em Angola.

Quando dizes que o filme é sobre aprender a ver o outro, apetece-me citar-te dizendo que é também sobre ouvir o outro, porque é um filme silencioso, onde aquilo que se escuta não necessita de ser gritado, há esse trabalho muito subtil, do ponto de vista da imagem, do som e, sobretudo, dos silêncios.

Sim, porque acho que estamos num momento particular da nossa sociedade, acho que não é só Portugal. As sociedades ocidentais estão exaltadas com o ruído das redes sociais, num momento de grande convulsão, muito entrincheirados, cada um na sua posição e nas suas convicções, a culpar para o outro lado. Basicamente, em vez de andarmos à batatada uns com os outros, acho que precisávamos de parar e olhar o outro, por mais que o outro nos pareça intragável.

Pensar que, por exemplo, estes Arménios, estes homens que estiveram na guerra, cresceram sob um regime que pintava o negro como o inimigo, o terrorista, o selvagem, o assassino, porque só assim se motivavam homens para ir para a guerra, disponíveis para matar. E os soldados eram literalmente treinados para matar, aliás, tivemos nesta projeção no Barreiro, um homem que disse literalmente isso, ‘nós fomos treinados para matar’.

Então, o que acontece a estes homens, 50 anos depois, quando o negro ocupa uma posição completamente diferente da nossa sociedade, é professor, médico, é o marido da nossa filha. O que aconteceu a essa visão do negro, e o que acontece quando um homem destes, treinado para matar, de repente, numa fase vulnerável da vida, quando precisa de ajuda, quando precisa que lhe troquem a fralda, quem está lá para o ajudar é uma mulher negra.

É este o pressuposto do filme, colocar, frente a frente, dois personagens que, normalmente, nunca trocariam uma palavra, e obrigá-los a conversar.

O mesmo do outro lado, a Hermínia, negra, mas nascida em Portugal, portanto portuguesa, que gosta de Papas de Sarrabulho, que torce pela seleção portuguesa, também ela já passou por experiências onde ouvia bocas em relação à sua pele, ou como, por exemplo, a Mina Andala me contou, nas longas conversas que tivemos neste filme, que quando entrava num táxi e apanhava um ex-combatente, ele lhe dizia, ‘ah, eu estive em Angola, eu deixei lá um mulatinho’.

Ela também não tem muita vontade de falar com estes Arménios, mas ali, como é um emprego, e ela tem uma função a desempenhar, é obrigada a isso. O filme faz esse exercício, de colocar frente a frente este homem e esta mulher, que normalmente não se cruzam, em que cada um fala sobre as suas dores mais profundas e, de alguma forma, consegue ver o outro e compreendê-lo de alguma forma. Só assim é que se conseguem estabelecer laços de empatia.

O mais evidente, na perspetiva de uma plateia portuguesa, é olharmos, para Arménio. De certa forma, sentimos aquilo que ele está a demonstrar, quando rejeita Hermínia, num determinado momento do filme, mas, obviamente, também temos de olhar para a Hermínia, que está em Portugal e transporta o trauma, obviamente, de toda uma história colonial. E o filme vai, inclusive, ao ponto de colocar também em cena um cuidador de origem brasileira, que sublinha esse gosto de viver em Portugal, o prazer que sente, e aí há uma enorme atualidade no modo como olhas para a geografia destas personagens no contexto português.

Qualquer pessoa que entre neste momento num ar vai ver que uma boa parte dos trabalhadores são imigrantes. É um trabalho duríssimo, aliás, eu tive o cuidado de mostrar também o lado dos trabalhadores dos lares. É um trabalho muito difícil, com pessoas muito vulneráveis e envolve grande resistência.

Daí, ter colocado esses personagens. Temos o trabalhador brasileiro, também temos os trabalhadores portugueses, como é óbvio, mas quis mostrar que são pessoas que estão com um trabalho muito difícil, que nem todos estão dispostos a fazer.

Aliás, quando vejo o pessoal com comentários racistas, sinto algum consolo em que um dia será um imigrante a cuidar dessas pessoas e, quem sabe, eles terão uma oportunidade de rever as suas posições.

A mim interessa o lado humano da história, em como, nesta loucura em que vivemos, nesta convulsão cada vez crescente, poderá haver um espaço para diálogo, e só com esse espaço para diálogo é que poderá haver a empatia, que acho que é aquilo que mais nos está a faltar neste momento.

  • tiago alves
  • 06 Nov 2025 16:17

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