25 Mai 2015 0:23
Há uma ironia paradoxal no palmarés do 68º Festival de Cannes. De facto, o júri presidido pelos irmãos Coen distinguiu os franceses, muito atacados internamente pela "qualidade" da respectiva representação, e deixou de fora os italianos, genericamente vistos como uma presença muito forte (inclusivamente visando já a temporada de prémios do final do ano).
Os franceses ganharam a Palma de Ouro, com "Dheepan", de Jacques Audiard, e surgem distinguidos nas duas categorias de interpretação, com Vincent Lindon e Emmanuelle Bercot (responsável pelo discurso mais longo, e também mais retórico, da cerimónia). Os italianos tinham o admirável Nanni Moretti ("Mia Madre"), e ainda Matteo Garrone ("Tale of Tales") e Paolo Sorrentino ("Youth"), mas… nada receberam.
É uma circunstância que não ilustra os tradicionais laços de colaboração entre as cinematografias francesa e italiana — muito simplesmente, como é normal nestas coisas, limita-se a reflectir a dinâmica de ideias de um júri recheado de personalidades fortes.
Registe-se, acima de tudo, que o júri orientou as suas escolhas também de modo a sublinhar a densidade temática dos filmes: actualidade absoluta no caso de "Dheepan", com a sua referência aos dramas dos refugiados (neste caso, vindos do Sri Lanka para França); importância simbólica, ideológica e política na visão do Holocausto contida em "Son of Saul", o filme do húngaro László Nemes que arrebatou o importante Grande Prémio (segundo na hierarquia do palmarés).
Enfim, sublinhe-se o facto de a cerimónia ter homenageado Agnès Varda, senhora de talento multifacetado, há cerca de seis décadas, desde os tempos heróicos da Nova Vaga, ligada à dinâmica interna do cinema francês. As suas palavras sobre Jacques Demy (1931-1990) — que ela já evocou no filme "Jacquôt de Nantes" (1991) — constituiram um momento genuinamente cinéfilo, sempre marcante num festival que quer, e sabe, preservar as memórias.