18 Mai 2019 13:33
O que é uma auto-biografia? Pois bem, trata-se desse momento, de uma só vez didáctico e confessional, em que alguém (por exemplo, um cineasta) transforma a sua história pessoal em coisa pública. E o que é o romanesco? Não o romantismo, entenda-se, antes a possibilidade de as memórias individuais acederem à condição de narrativa autónoma, transfigurando-se em ficção habitada pela ambiguidade de qualquer forma de verdade.
Creio que Pedro Almodóvar conseguiu uma magnífica conjugação de tais registos com "Dolor y Gloria", o título que o traz de volta à secção competitiva de Cannes (a meu ver, de longe, o melhor filme de toda a sua carreira). Com os seus impasses criativos, a sua dependência de drogas e uma decomposição física algo suicidária, a personagem central do cineasta Salvador Mallo, numa interpretação hiper-delicada de Antonio Banderas, não é um "duplo" de Almodóvar, antes uma (re)configuração intimista dos seu temas, obsessões e narrativas.
Obviamente não por acaso, "Dolor y Gloria" mantém uma relação sistemática com as memórias da infância do protagonista. Num jogo tão calculado quanto enigmático com tais memórias (para além das convenções correntes do "flashback"), o filme vai-se desenvolvendo como um processo de comovente redescoberta. No limite, Almodóvar filma esse misto de perturbação e magia em que podemos descobrir que passado, presente e futuro se cruzam e contaminam em todos os momentos da nossa existência.
A meu ver, o cinema de Almodóvar estava bloqueado num impasse criativo de que o anterior "Julieta" (2016), também revelado em Cannes, tinha sido a sintomática ilustração. Agora, com "Dolor y Gloria", o cineasta espanhol arrisca para além da mera reprodução das suas "imagens de marca", conseguindo, em última instância, um filme que, envolvendo uma serena contemplação do horizonte da morte, se impõe como um objecto de contagiante vitalidade.