Convenhamos que um filme como "Autobiografia de Nicolae Ceausescu", apresentado extra-competição em Cannes/2010, pede ao seu potencial espectador alguma disponibilidade física e mental. Por uma razão muito simples: dura três horas… Em todo o caso, isso não o impede de ser um dos mais extraordinários documentários que se fizeram no século XXI.
Graças à abundante oferta de "streaming" neste nosso tempo de recolhimento, o filme pode ser visto ou revisto numa plataforma online [Filmin]; é uma possibilidade tanto mais interessante quanto a sua passagem pelas salas de cinema, em 2011, foi, no mínimo, discreta.
Em boa verdade, a designação de documentário é, não exactamente discutível, mas insuficiente para dar conta do espantoso trabalho de montagem desenvolvido pelo realizador Andrei Ujica. Isto porque estamos mesmo perante um perverso discurso "autobiográfico": para fazer o retrato do ditador romeno, Ujica usou apenas imagens de propaganda do seu próprio regime.
Que acontece, então? Pois bem, a organização narrativa das imagens — importa sublinhar: sem qualquer comentário off — vai funcionando como espelho insólito da própria propaganda, desmontando as suas demagogias e imposturas. Ujica relembra-nos, assim, uma das mais velhas (e também mais esquecidas) lições cinematográficas: nenhuma imagem está imbuída de um significado definitivo, a sua significação transfigura-se através do próprio contexto em que surge inserida.