29 Ago 2020 0:59
Na semana em que o ciclo "Essencial Fellini" apresenta "Julieta dos Espíritos" (1965), vale a pena fazer um breve inventário da actualidade felliniana. Que é como quem diz: do modo como o cinema de Federico Fellini fala para o nosso presente.
"Julieta dos Espíritos" é, afinal, um filme conhecido através de um equívoco de identificação — básico, mas incontornável. De facto, a personagem central não é a "Julieta" a que se refere o título português, como não é a figura citada nas versões francesa ou inglesa: "Juliette des Esprits" e "Juliet of the Spirits", respectivamente. Estamos a falar, de facto, de Giulietta: "Giulietta degli Spiriti". Será preciso lembrar que se trata de um jogo de espelhos com o nome da intérprete principal, Giulietta Masina, mulher do realizador?
A viagem paradoxal, porque natural e onírica, de Giulietta pelos espectros do universo do marido existe como um mecanismo de perversa revelação e auto-revelação. Porquê perversa? Porque o cinema de Fellini nasce de um desafio radical, dir-se-ia infantil: o de intensificar a verdade da exposição intiimista sem anular, antes pelo contrário, o fulgor dos artifícios espectaculares.
Encontrámos isso mesmo nos primeiros títulos deste ciclo, a começar, claro, por "Oito e Meio" (1963), retrato e auto-retrato da criação cinematográfica que define um assombramento primordial: o criador é aquele que encena os seus fantasmas, tanto quanto é encenado por eles.
Daí o valor inestimável do também emblemático "La Dole Vita" (1960). Afinal de contas, há 60 anos, Fellini desmontava a futilidade dos "famosos", hoje em dia consagrada como lei mediática. Com uma particularidade que está longe de ser banal: há na visão felliniana tanto de crueldade como de compaixão.
Enfim, o seu frente a frente narrativo com Giulietta Masina começara com "A Estrada" (1954), filme que, além do mais, relança o cinema italiano para lá do sistema narrativo e moral do neo-realismo — juntamente com os seus contemporâneos (a começar por Michelangelo Antonioni), Fellini foi também um experimentador que formulou a hipótese de um novo humanismo.