18 Jul 2021 1:06
Aviso de spoiler, já no parágrafo seguinte…
Lembremos um momento peculiar de Cannes/2021: em "Les Olympiades", Jacques Audiard filma, em imagens a preto e branco, as vidas cruzadas de alguns habitantes de Paris 13e. Com uma excepção: num plano de breves segundos, vemos pela primeira vez a personagem de Amber Sweet (Jehnny Beth) a cores — está iluminada pela chama de um isqueiro, vamos conhecê-la como protagonista de "sessões eróticas" online e, depois, acompanhar a sua entrada virtual na vida de Nora (Noémie Merlant).
São segundos realmente inesquecíveis que, concluído este Festival de Cannes, parecem pertencer à mesma iconografia em que "Titane" desenvolve o seu delírio corporal & tecnológico. Cenário recorrente: uma noite de muitas ameaças em que a máxima agressividade se enreda com a mais trágica vulnerabilidade.
Ao receber a sua Palma de Ouro, por "Titane", Julia Ducournau terá resumido a singularidade da sua Alexa (Agathe Rousselle) com um agradecimento muito específico ao júri presidido por Spike Lee: "Obrigado ao júri por ter deixado entrar os monstros [05m 35s]".
Talvez seja esse o poder radical de "Titane", porventura ainda imperceptível na totalidade das suas componentes. Os novos monstros que Alexa simboliza (ela que, a certa altura, se transforma num outro ser de nome André) são comoventes e frágeis como muitas entidades da tradição do cinema de terror — será preciso recordar "O Homem Elefante"? —, ao mesmo tempo que desafiam os nossos padrões de beleza e fealdade.
Dir-se-ia que para nos garantir que não se trata de uma mera questão de cosmética, Ducournau força a definição da sua Alexa para lá da questão corporal, das formas do corpo. O que está em jogo é, de facto, visceral, interior: o sangue que vemos quando, em criança, logo nos momentos iniciais do filme, lhe é colocada uma placa de titânio na cabeça vai dar lugar ao óleo das máquinas.
O corpo, decididamente, deixou de existir como uma emanação natural da natureza. A redundância é necessária, quanto mais não seja porque sentimos esse desamparo que nasce do esvaziamento de qualquer noção redentora de natureza. Os novos monstros querem, afinal, ser os representantes de uma nova poética. No limite, fazem-no por desesperada solidão. O que, bem entendido, metalizados ou não, reforça a sua humanidade.