19 Dez 2021 2:50
Mesmo considerando que o mercado português continua a ser marcado por muiitos desequilíbrios (de distribuição, exibição, promoção…), há que reconhecer que um dos princípios básicos da cinefilia — manter uma relação ágil e informada com o património cinematográfico — tem sido, em anos recentes, regularmente satisfeito.
Falo de quê? Pois bem, da mais que razoável quantidade de reposições de títulos marcantes que têm acontecido. Não poucas vezes, em cópias exemplarmente restauradas. É agora o caso de "Gato Preto, Gato Branco", filme que Emir Kusturica lançou em 1998, três anos decorridos sobre a sua vitória no Festival de Cannes, com "Underground".
Como sempre acontece no cinema de Kusturica, as singularidades das personagens surgem envolvidas com as convulsões do colectivo, num processo que desafia as fronteiras de todos os géneros. Neste caso, as atribulações de uma comunidade cigana nas margens do Danúbio possuem todo o potencial de um romantismo dramático que cedo se transfigura em surreal delírio de comédia.
Daí o efeito insólito do trabalho de Kusturica: por um lado, há na sua narrativa o sentido exemplar do detalhe psicológico e do apontamento social; por outro lado, tudo isso se enreda num artifício melodramático cujo limite se confunde com o imaginário da ópera — escusado será dizer que, num objecto como "Gato Preto, Gato Branco", a música não é um acompanhamento, circulando pelas imagens como uma insólita personagem. Eis uma esclarecedora montagem de vários momentos do filme.