23 Mai 2022 10:40
Um assassino de prostitutas que "purifica" em nome de Deus o submundo de uma das cidades mais sagradas do Irão sob os aplausos da população. Em "Holy Spider", o realizador Ali Abbasi, em competição em Cannes, revela outro lado da república islâmica.
"É um dos poucos filmes que mostra a realidade", Abbasi, um dinamarquês de raízes iranianas que deixou a sua marca na competição com um thriller ao estilo de David Fincher na terra dos mullahs.
A inspiração veio de uma sucessão de assassinatos que teve lugar há perto de 20 anos: segue o assassino de 16 prostitutas, que durante o julgamento alegou que queria limpar as ruas de Mashhad, uma das principais cidades sagradas do xiismo, do vício.
No filme, "o Aranha", como o assassino foi apelidado, conduz a sua motocicleta pelas ruas de uma cidade localizada nas principais rotas de tráfico do Afeganistão onde a prostituição e a droga prosperam. As prostitutas que se cruzam com ele acabam estranguladas no chão do seu apartamento.
Após despejar os corpos na berma da estrada, telefona a um jornalista, sempre o mesmo, para reclamar a responsabilidade. A polícia não parece ter pressa em prendê-lo até que uma jovem jornalista de Teerão se propõe localizá-lo e obrigá-lo a pagar pelos seus crimes.
"Não me parece que seja um filme anti-governamental, ou um filme activista. O que retrata não está longe da verdade, e se alguém tem um problema" com o filme, que mostra sexo violento e drogas, bem como a misoginia da sociedade, "então tem um problema com a realidade, não comigo", disse Ali Abbasi, em entrevista à AFP.
Obviamente, o realizador, que mudou totalmente de registo em comparação com "Border", obra que o revelou em Cannes em 2018, não pôde filmar na cidade santa, nem sequer no Irão – de onde nunca recebeu resposta aos pedidos de autorização.
Pio e psicopata
Explica que a equipa de filmagem foi então expulsa da Turquia, que recuou sob pressão da República Islâmica, e acabou por recriar os cenários na Jordânia.
"Para mim, seria muito fácil dizer que os cineastas que estão no Irão não mostram a realidade", disse Ali Abbasi, um dos dois iranianos na corrida à Palma este ano, juntamente com Saeed Roustaee, numa edição em que o multi-premiado Asghar Farhadi faz parte do júri, mas "não se trata de os julgar porque cada filme feito no Irão é um milagre".
Em "Holy Spider", o realizador recrutou Zar Amir Ebrahimi, actriz de televisão que acabou por deixar o Irão e refugiar-se em França após a emissão de um vídeo "explícito" ter arruinado a sua carreira. É ela que interpreta a jornalista que enfrenta o assassino de duas caras: homem de família piedoso e ordeiro de dia, psicopata de noite, interpretado por Mehdi Bajestani.
Longe de terminar com a prisão do criminoso, o filme também vale pela segunda parte, a viagem judicial durante a qual ele reivindica os seus actos em nome da religião, ao embaraço dos juízes confrontados com o apoio daqueles que vêem os seus crimes como um "sacrifício".
"No Irão, o sistema judicial (…) é realmente um teatro de merda, como um programa de televisão onde (os argumentistas) podem obter o resultado que querem para as personagens", observa o realizador.