24 Mai 2022 11:29

Esqueça os formatos clássicos com peritos ou pessoas próximas do artista filmados em estúdios de gravação. Em "Moonage Daydream", apenas ouvimos e vemos David Bowie falar através de imagens de arquivo inéditas que nem sequer estão divididas cronologicamente, mas por tema (processo criativo, arte e dinheiro, etc.).

A pontuar cada capítulo, imagens geradas por computador especialmente criadas brincam no espaço e nas estrelas. Uma escolha óbvia para o artista que criou a personagem dor astronauta do Major Tom para a canção "Space Oddity".

Entre estas imagens e 48 canções remasterizadas, o espectador obtém algo próximo de uma "experiência imersiva, como num planetário", afirma Brett Morgen, entrevistado pela AFP durante o 75º Festival de Cannes, onde o documentário está a ser apresentado fora de competição.

Este americano, que antes assinou "Kurt Cobain: Montage Of Heck", uma obra mais tradicional, fala num tom animado. Este trabalho levou-lhe cinco anos e é o primeiro do género autorizado pelos legatários de Bowie desde a sua morte em 2016. Foram eles que deixaram Morgen abrir as arcas do tesouro.


Um arquivo conservado

Bowie foi "extremamente importante em vários períodos da minha vida", explica o cineasta. "Antes de mais, quando o descobri tinha 11 ou 12 anos, durante a puberdade, e foi fundamental numa altura em que queria ser eu e não os meus pais".

Conheceu-o pessoalmente nos anos 2000 para um projecto. "Não era o momento para ele, graças a Deus, porque eu ainda não estava onde devia estar para um filme sobre Bowie (risos)". Quando o criador de Ziggy Stardust morreu, Morgen estava pronto e preparado para dinamitar as convenções dos documentários sobre estrelas rock.

Um dos responsáveis pela herança de Bowie confidenciou-lhe então "que David tinha recolhido e preservado o seu arquivo". "Não para o trabalho tradicional, mas mais para um mergulho imersivo como o que eu pretendia".

A seguir, Morgen (agora com 53 anos) teve um ataque cardíaco e ficou em coma. Recuperado, "A filosofia de Bowie, palavras, arte" ressoou nele mais do que nunca.

"Morte, reencarnação, Bowie falou disso desde o início, como na canção ‘Silly Boy Blue’", insiste. Tira o telefone e toca 20 segundos da canção, traçando um paralelo com a frase "Blackstar", a faixa título do último álbum do britânico, que também fala da morte e do legado através da criação.


Contradições

"Moonage Daydream" (uma faixa de "The Rise And Fall Of Ziggy Stardust…") centra-se assim nos apetites de vida de um artista com mil rostos. A parte mais interessante não é a secção de abertura com as considerações do músico sobre espaço e tempo.

O documentário acerta em cheio no alvo quando vemos Bowie cortar pedaços no papel com frases para as montar aleatoriamente e dar corpo às suas canções, algo que muitas vezes tinha sido escrito mas nunca mostrado.

Podia-se temer uma hagiografia controlada pelos detentores dos direitos. Mas as imagens de um Bowie emaciado a cheirar constantemente cocaína testemunham também os períodos sombrios e os seus vícios. E a sequência com uma famosa empresa de refrigerantes, patrocinadora de uma digressão que deu origem a um célebre anúncio com Bowie e Tina Turner, coloca o artista perante as suas contradições entre arte e dinheiro.

Por outro lado, passagens marcantes de "Moonage Daydream" permitem também apreciar o talento de Bowie como pintor e reconhecer um amigo íntumo, Iggy Pop, nas suas telas, ou ver imagens de Jeff Beck, guitarrista dos Yardbirds, a tocar ao lado de Bowie, no palco.

  • AFP
  • 24 Mai 2022 11:29

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