01 Abr 2024
Depois do sucesso de “Drive My Car”, que recebeu o prémio de melhor argumento no Festival de Cannes e o Óscar de melhor filme internacional em 2022, o japonês Ryusuke Hamaguchi saiu do meio urbano para uma paisagem rural onde filmou “O Mal Não Está Aqui”, vencedor do grande prémio do júri do festival de Veneza.
O filme partiu de um desafio lançado pela cantora e compositora Eiko Ishibashi, para que Hamaguchi criasse imagens para uma obra musical.
“Combinámos que faria aquilo que normalmente faço, que são filmes. Iria escrever um argumento, encontrar atores e dirigi-los. E depois, à parte, iria captar imagens fora da rodagem para a música dela. Isto tornou-se um projeto em duas partes.”
Inspirado pela música, Ryusuke Hamaguchi procurou as imagens e encontrou uma pequena comunidade rural, no interior do Japão. As rotinas locais são perturbadas pela proposta de uma empresa para instalar um parque de campismo de luxo, onde os visitantes podem beneficiar do contacto privilegiado com a natureza.
“filmar apenas a natureza não seria interessante o suficiente, sabia que precisava de incorporar humanos nesta paisagem.”
Desta forma, Hamaguchi encontrou o cenário mas também a história de “O Mal Não Está Aqui”.
“Quando estava à procura de locais para filmar, tinha noção de que não seria interessante ter apenas imagens de paisagem natural. Comecei a pensar como os humanos interagiam com a paisagem. Comecei a investigar e encontrei uma comunidade confrontada com a proposta de construírem um parque de glamping.”
Aprofundando esta realidade, o cineasta percebeu o conflito que se gerou.
“Na realidade aquela comunidade estava a ser confrontada com uma proposta péssima e que foi muito criticada na reunião em que discutiram o assunto. Havia gravações sobre essa reunião que pude ouvir para me inspirar. E, claro, também falei com algumas pessoas que moram ali e usei essas conversas para fazer o filme”.
O projeto de glamping não é bem recebido pela comunidade local, como percebemos a partir da relação de um pai com a sua filha, que retrata como a proteção e o respeito pela terra atravessam gerações.
“honestamente, não tinha grande ligação com a natureza até fazer este filme.”
Apesar dos temas evidentes que o filme coloca, na relação entre humanos e natureza, Ryusuke Hamaguchi não se revê no cinema de motivações ambientais, mesmo que o filme nos coloque pela frente os dilemas tão atuais em torno da sustentabilidade e do confronto da natureza com as atividades que visam o lucro.
“Desde já quero dizer que não me sinto capaz de falar sobre questões ambientais. Devido ao filme perguntam-me muitas vezes qual é a minha posição sobre esse assunto, mas na realidade esse não é o foco do filme. Comecei este projeto de um ponto de vista muito visual. Queria tentar perceber de que forma podia harmonizar as imagens deste mundo com a música da Eiko. E cheguei à conclusão de que a natureza é o melhor material para a música que ela faz. Há uma sensibilidade semelhante, porque a música dela também não propõe respostas muito evidentes. Achei que o movimento natural da água, da luz, ou das árvores seriam a melhor forma de expressar o que a música dela me faz sentir. Mas sentia que filmar apenas a natureza não seria interessante o suficiente, sabia que precisava de incorporar humanos nesta paisagem.”
Já foi assim em “Drive My Car”, e agora volta a acontecer. O cinema de Ruysuke Hamaguchi desenvolve-se de forma lenta, até se tornar evidente o foco da história. No caso de “O Mal Não Está Aqui”, o realizador entende que a proposta passa, antes de mais, por ser uma forma de visualizar a música de Eiko Ishibashi, mas sem ignorar que havia uma história real a acontecer naquele lugar.
“Apercebi-me que atualmente, quando pomos humanos num cenário natural, as questões ambientais tornam-se incontornáveis. Como se existisse um elemento de destruição, presente na estrutura da história. Pensei nisso. Mas em vez de o tornar no grande problema desta história, quis que fizesse parte da vida rotineira de todos os dias. Sabia que não podia simplesmente ignorar o assunto, mas quis que houvesse equilíbrio e, no meio de tudo isto, de facto acho que o diálogo é muito importante. Mas no nosso modo de vida e na nossa sociedade atual, creio que o diálogo não é respeitado. Tudo isso acabou por fazer parte do filme.”
Uma história sobre a ameaça humana em cenários e recursos naturais. Ryusuke Hamaguchi soube encontrar os contornos da história e aceitou o desafio de mudar o foco do olhar mais urbano, para a paisagem rural que o filme propõe.
“Honestamente, não tinha grande ligação com a natureza até fazer este filme. Cresci em zonas mais urbanas, mesmo que se situem em locais mais rurais, por isso nunca tive a rotina de ir brincar para a natureza em miúdo. Ou seja, não sou propriamente um amante da natureza. O mais próximo disso é visitar um parque na cidade. Por exemplo, em Tóquio há árvores plantadas na cidade, e esse é o meu contacto com a natureza. No filme, na cena de abertura, há uma imagem das árvores e isso remeteu-me para o tempo em que tinha 20 anos, e para as memórias dessas árvores em Tóquio. Lembro-me de achar que podemos apreciar a natureza em movimento. Neste filme apercebi-me de que isso podia dar uma perspetiva da natureza em movimento. Quando estava à procura dessa perspetiva, dei por mim muito cansado, mas percebi que a natureza tem esse elemento que cura. Naquela altura ainda não tinha percebido como transportar isso para o filme, mas estou satisfeito por tê-lo conseguido depois”.
Da cidade para a floresta no interior do Japão, Ruysuke Hamaguchi volta a mostrar que o seu cinema pode ser universal. Em “O Mal Não Está Aqui”, o realizador propõe uma história que apela ao envolvimento do público, com um lugar e o modo como as ameaças externas podem ser sentidas.