27 Jun 2024
No filme “A Besta”, a inteligência artificial é o pretexto para falar de medos, sentimentos e emoções. A personagem central é Gabrielle, uma mulher que atravessa três épocas distintas, vive várias vidas e histórias de amor com o mesmo homem, Louis, com quem se cruza em diferentes tempos.
Aproximando-se da ficção científica, o realizador Bertrand Bonello parte do ano de 2044 para desencadear a ação:
O presente do filme “A Besta” passa-se em 2044, pelo que quase se pode dizer que é um filme de ficção científica. É um período, uma era em que as emoções se tornaram perigosas, uma era em que reina a inteligência artificial, que resolveu todos os problemas que os humanos não conseguiram resolver. Mas é, de alguma forma, uma forma de ditadura sem problemas.
Para se tentar integrar à sociedade, sem ser como sendo uma certa forma de escravatura, para nos livrarmos das emoções, temos que purificar o ADN, para tal, temos de voltar ao passado, às nossas vidas passadas, para as reviver e as limparmos de tudo isso. Assim, a personagem Gabrielle tem de escolher entre as emoções e um trabalho interessante. Ela vai reviver o que viveu em 1910, depois em 2014, e de cada vez, sempre com o Louis, sempre com o mesmo homem.
O melodrama que Bertrand Bonello queria filmar aproximou-o do conto “A Feira na Selva”, do escritor Henry James. O realizador francês faz uma adaptação livre da obra:
Havia um desejo de misturar épocas, de tocar no melodrama, de ter uma personagem feminina central. Depois, a ideia do melodrama levou-me até ao escritor Henry James, e lembrei-me deste conto que reli.
Quando comecei a escrever, foi a primeira coisa em que me baseei, sendo bastante fiel ao livro no início, especialmente na parte em que se passa em 1910. Depois tornei-me cada vez mais infiel ao conto, para explodir um pouco as coisas, para misturar géneros. Henry James levou-me de novo à ideia do medo.
A ideia do medo levou-me a utilizar cenas que são quase filmes de terror, e assim por diante. De facto, é um longo caminho. Uma ideia leva à outra.
O cineasta confessa que “A Besta” reflete os próprios medos. No filme, a personagem principal é uma mulher, e não um homem, como acontece no livro. Mas o medo é igual, como uma premonição de que algo mau e terrível pode acontecer, explica Bertrand Bonello:
Ela tem medo de alguma coisa. A personagem Gabrielle não sabe do que tem medo, mas tem medo de alguma coisa. Isto é muito Henry James. Algo terrível vai acontecer. É verdade que é um argumento de ficção brilhante, porque seja para a personagem ou para o público, sente-se que algo vai acontecer, mas não sabemos o quê.
O medo é um sentimento muito forte, e cada vez mais forte nos dias de hoje. É uma personagem muito próxima de mim, seja ela feminina ou masculina, ou um pouco como algo que se passa no futuro. Mas o que é ficção científica? Inventamos o mundo da manhã, mas apercebi-me de que também o inventamos com os medos que temos hoje. Por isso o filme reflete, inevitavelmente, muitos dos meus próprios medos.
A proximidade orientou Bertrand Bonello na escolha dos anos em que se desenrola a história. O massacre ocorrido em Isla Vista, nos Estados Unidos, em 2014, inspirou o cineasta que tinha vontade de ter como personagem masculina uma pessoa ‘incel’, alguém que odeia as mulheres.
Estava à procura de algo contemporâneo e escolhi 2014, porque de repente quis ter esta personagem ‘incel’, como se diz. Lembro-me de vídeos que tinha visto em 2014 de alguém chamado Elliot Rogers, e os vídeos do filme de pessoas ‘incel’ são realmente copiados de 2014.
Mantive a data intacta, gostei de facto de ter sido há 10 anos. E já agora, o futuro não está tão longe, porque é daqui a 20 anos. Tudo isto dá-vos uma ideia de proximidade. Não foi há muito tempo e não será daqui a muito tempo.
Integrar 2044, 2014 e 1910, as três épocas em que se desenrola a narrativa, num único filme, representou um desafio para o Bonello:
“A Besta” é um filme com um grande número de desafios. É preciso criar três universos, fazê-los existir, dar-lhes uma coerência visual, uma identidade. E, acima de tudo, o mais difícil não foi fazer três filmes, mas apenas um.
Que estas três histórias se tornassem numa só. Que estas três personagens femininas se tornassem numa só. E que estas três personagens masculinas se tornassem numa só.
É verdade que foi um filme em que tive de ultrapassar algumas dificuldades. Mas foi um bom desafio.
Lea Seydoux e o ator britânico George Mackay têm os papéis principais. O realizador pensou logo na atriz francesa durante a escrita do guião. Não vê outra a assumir a personagem:
Pensei nela quando estava a escrever porque não conseguia pensar em mais ninguém que pudesse existir nestes três períodos. Acredito nela no passado e acredito nela no futuro.
A Lea é uma atriz que atravessa os tempos sem deixar de ser muito moderna. E eu precisava do ar misterioso que ela tem. Por mais horas que filmemos, há sempre algo vago em que não sabemos em que ela está a pensar. E para a câmara isso é muito valioso.
O drama “A Besta”, uma distopia futurista, uma história de amor em três épocas diferentes. Esteve em competição no Festival de Veneza e passou pelo IndieLisboa.
Está desde 27 de junho em exibição nos cinemas portugueses.