06 Set 2024
Partindo de uma instalação audiovisual comissariada pela Cinemateca para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, Luciana Fina, cineasta e artista visual italiana que trabalha em Lisboa desde 1991, construiu um filme que revisita as imagens da transição da ditadura para a democracia, o processo de construção de um novo país e o seu futuro.
“Sempre” utiliza imagens datadas de 1962 a 1983, englobando diversos formatos: ficção, documentário, atualidades, cinema amador. Na montagem, Luciana Fina articula estes elementos com sons e imagens do momento histórico atual: manifestações pelo direito à habitação, ao trabalho digno e à cultura, a questão da mulher e a questão colonial.
Normalmente nos festivais de cinema é possível encontrar um tema, mas às vezes é necessário procurar muito e juntar os filmes, nem sempre eles comunicam da mesma forma. Desse ponto de vista, este é um festival único, porque o tema é evidente: trata-se da supremacia branca, da radicalização do discurso na esfera política, família e sociedade. Um filme sobre o 25 de abril tem aqui uma atualidade extraordinária. Sente isso?
Então, há várias coisas que quero dizer, porque o filme de facto nasce sob esta preocupação. Sinto isso ao estrear aqui, neste contexto, e de facto já vi filmes que me pareciam dialogar, não em termos estéticos, narrativos, ou temáticos, mas com a mesma inquietação. Diria que neste momento de radicalização e de uma época obscura é preciso que se volte a pensar que é possível inventar o futuro, ou imaginá-lo, ou trabalhar para isso.
Nesse sentido, a primeira preocupação do filme e a forma como nasceu, a forma como eu respondi à Cinemateca quando me convidaram a fazer primeiro a instalação – que foi a origem de tudo isto – e depois, quando propus avançarmos também para um formato fílmico, a primeira coisa que pretendi foi fazer um filme sobre o presente, não foi fazer um filme de celebração.
Não é um filme que queira celebrar um evento, ou um segmento da história, quer celebrar a potência da história, em termos de história generativa, de gestos para o presente e, sobretudo, para o futuro. E, nesse sentido, inscrevo-me bem nisso que sinto também ser uma inquietação deste festival e da programação da Giornate Degli Autori, que convidaram o filme a fazer parte desta secção. A minha inquietação e o meu privilégio é poder contar com o cinema que nasceu para interferir na história, porque também é um momento crucial do cinema português.
Eu digo sempre, é um filme que fala do melhor momento da história do país e, ao mesmo tempo, de um momento crucial do cinema, porque é um cinema que queria interferir com a história, não é um cinema que observa a história, não é um cinema que a documente. É um cinema que queria interferir, que queria fazer gestos cinematográficos que integram o gesto da Revolução e que, portanto, possam também interferir na história.
O cinema, neste caso, foi um pouco atrás do tempo, ganhou essa liberdade e rapidamente se colocou à frente do tempo, ou na dinâmica do tempo. Costumo dizer que o cinema, em vários momentos e em vários problemas, ou temas, costuma estar à frente do tempo. Quando vejo aqui alguns filmes sobre este problema atual da radicalização política e social, sinto que o cinema começou a ficcionar, ou a documentar um pouco tarde. Acha que o cinema, hoje, está a observar a problemática a tempo? Pode ter eficácia?
Acho que o cinema pode ter eficácia. Não sei se a tem. Isto é, não é todo o cinema que fala de migração, não é todo o cinema que fala dos problemas de emancipação da cultura colonial, não é todo o cinema que fala de habitação, que consegue esta força. Posso explicar com o exemplo da Cecilia Mangini, que eu cito com “All’armi siam fascisti!”, no princípio do filme, ou de documentaristas que nos transmitiram um cinema que vivia de empatia profunda com os assuntos de que se ocupavam.
Portanto, há um cinema como o que eu aqui trabalho, que parece ter esta qualidade. O nível de empatia e proximidade com que filmamos a realidade, como podemos ser, de fato, agentes para interferir na história é fundamental. Esse nível de empatia e proximidade é muito forte, é muito necessário como característica para que o cinema se torne uma arma possível. Porque não é um cinema militante propriamente, é um cinema que pode ter esse grau de relação com a realidade.
Gostava de voltar ao início do filme porque há quase uma introdução que é factual, que é documental, que nos coloca no tempo das ditaduras europeias através de um filme italiano… Porquê só Itália? Porquê referir apenas esse tempo pré-25 de Abril em Itália?
Diria que há três razões. A primeira é biográfica. Porque eu sou também a minha história. A minha história com H grande. Não é a minha história individual, mas da minha afirmação, do meu legado histórico, da história da resistência e da libertação desse fascismo em Itália onde nasci.
Segundo, há uma razão cinematográfica. Porque a Cecilia Mangini, o Lino Del Fra e Lino Miccichè fizeram um grande filme de montagem utilizando o arquivo, o que é uma excelência nesse sentido. É a forma de cinema de arquivo que eu posso citar no princípio como o legado que recebi também da Cecilia Mangini, que é a primeira grande documentarista italiana que considero quase a mãe da história do documentário assinado por uma mulher em Itália. (…)
E a terceira razão é político-histórica, porque Mussolini era de facto figura de referência do Salazar, muito mais que outros ditadores. Portanto, tinha todas essas razões para escolher esse trecho como entrada do filme.
Nesta investigação tenho uma curiosidade, qual é o documento, o filme que mais a surpreendeu?
Investiguei muito a história do cinema português, portanto conhecia muitos filmes e, mais do que enumerar aqui, ou indicar um filme que mais me surpreendeu, poderia falar dos filmes que foram mais estruturantes na construção da narrativa e, nesse sentido, não posso deixar de citar dois, especialmente, que são “A Invenção do Amor” do António Campos e a “Revolução” da Ana Hatherley.
“A Invenção do Amor” porque é um filme que muitos anos antes, em 1965, constrói uma possibilidade com um grau de experimentação e uma linguagem incrível para a altura, lançando essa invenção do amor como uma resposta à asfixia do controlo da PIDE e da opressão do fascismo. Depois, a explosão da Ana Hatherley com o “Revolução”. A montagem sonora é extraordinária e a viagem que nos permite fazer nas imagens pintadas escritas nas paredes, com aquela velocidade, era algo também fortemente inspirador para a minha própria narrativa.
O filme tem uma enorme atualidade como estamos aqui a perceber e há também um trabalho a partir das imagens do arquivo, do tempo. Há um trabalho de tornar esses documentos visuais muito mais presentes através do tratamento do som, muito subtil, introduzindo questões atuais relacionadas, por exemplo, com o aquecimento global, a sustentabilidade, ou problemas que remetem para a época, obviamente, como a habitação e a emancipação feminina. Gostava de saber perceber qual é o principal problema comum, ou seja, comum ao tempo, outrora e agora.
Obrigado por reparar disso! A interferência que de forma subtil procurei colocar dentro do filme é uma interferência do presente e, de facto, não foi fácil chegar à conclusão do que escolher desse presente. Para já porque, infelizmente, sabemos que muitas das questões que procuravam resolução durante a época da revolução e do PREC, são atuais e gravemente exacerbadas. Diria a questão da habitação em primeiro lugar, porque para este país significa um desmembramento das comunidades e da sociedade que é gravíssimo.
Esta revolução vista desta forma neste filme através destas imagens por um espectador que não tem noção do que se passou em Portugal em 1974, pode ser inspiradora hoje?
Pode absolutamente ser inspiradora. Estou neste momento fora de portas. Neste momento sinto uma grande felicidade em poder começar o percurso do filme aqui em Itália porque é meu grande desejo também confrontar-me com o público italiano, perceber o que passa deste filme para um público estrangeiro e quais são as hipóteses que surgem de sentir o alcance de imaginação para o futuro. Mas tenho a certeza que os processos em curso na revolução portuguesa poderão ser inspiradoras também fora de portas.