27 Out 2024

“Disco Boy” é um drama que coloca frente a frente um soldado da Legião Estrangeira e um jovem revolucionário da Nigéria. Um encontro que cruza sonhos e destinos.

A intenção da Giacomo Abbruzzese não foi fazer um filme de guerra:

Há muito tempo que queria fazer um filme que abordasse a questão da guerra, mas de uma forma diferente dos filmes que conhecia sobre a guerra. Queria fazer um filme que desse espaço ao outro, em que não fosse contada apenas uma perspetiva, mas que contasse os dois lados da guerra.

Assim, quando surge o confronto entre as duas personagens, Alexei e Jomo, nós, como espectadores, não sabemos exatamente onde nos colocar. Não temos uma empatia imediata por nenhum deles e, por isso, sofremos por ambos, preocupamo-nos com ambos.

“Disco Boy” é a primeira longa-metragem de ficção da Giacomo Abbruzzese. Foi um projeto que demorou 10 anos a concretizar. O encontro com um bailarino que tinha sido soldado foi a inspiração. O cineasta italiano foi levado a comparar duas realidades distintas, mas com vários pontos em comum:

A ideia para as personagens surgiu de um encontro casual que tive numa discoteca há mais de 10 anos, na Puglia, na minha região, com um dançarino que tinha sido um soldado italiano. Não estava ligado à Legião Estrangeira, mas interessava-me como o corpo do bailarino e o corpo do soldado podiam coexistir na mesma pessoa.

Comecei a pensar nessa polaridade. Inicialmente pareciam-me dois universos muito distantes. Na verdade, pouco a pouco, comecei a refletir e percebi pontos de contacto entre ambos. Por exemplo, o sentido da coreografia, o sentido da disciplina, quase uma necessidade, um desejo de chegar fisicamente exaustos ao fim do dia. Tanto o bailarino como o soldado têm essa necessidade de quase exaustão física para se sentirem realizados.

Em “Disco Boy”, a personagem principal é Alexei, um jovem bielorrusso que se alista na Legião Estrangeira para obter a nacionalidade francesa. Um trajeto que o leva até Jomo, um jovem do movimento para a emancipação do Delta do Níger, que luta contra as companhias petrolíferas que destroem a aldeia. Os sonhos, os traumas e os fantasmas do passado das personagens entrelaçam-se ao ritmo da música e da dança.

Para o realizador italiano, as duas personagens, Alexei e Jomo, estavam condenadas a encontrar-se. No filme, os dois lados do conflito existem a par, não se reduzem ao estatuto de inimigo ou de vítima:

Estas duas personagens estão condenadas a encontrarem-se num teatro de guerra. Nós, enquanto espectadores, conhecemos a natureza trágica destas duas personagens.

Não que Alexei seja o mau mercenário e Jomo seja, necessariamente, o bom revolucionário, nem vice-versa. Nem Alexei é o soldado bom e Jomo é simplesmente o terrorista a neutralizar. Conhece-se a história um do outro, o que, na minha opinião, é fundamental na vida humana.

No cinema também. É interessante quando há um processo de empatia, de curiosidade em relação a alguém que é diferente de mim, de outro sexo, de outra religião, de outra origem, de outro percurso.

O ser humano, de alguma forma, se contarmos uma história, consegue projetar-se nessa história, consegue projetar-se numa outra experiência. Digamos que o poder do cinema dá essa capacidade projetiva de nos levar a essas duas existências sem julgar.

A guerra e a dança são duas dimensões de “Disco Boy”. Para Giacomo Abbruzzese, são os dois vórtices que conduzem a narrativa:

O filme está, de alguma forma, imbuído desta sugestão porque é, simultaneamente, um filme de guerra e um filme de dança.

Há dois momentos, digamos, quase como um vórtice no filme e, na minha opinião, um deles é o maior vórtice, o do encontro, o choque entre Alexei e Jomo, que é de facto filmado com a câmara térmica. A partir daí, o filme já está a mudar, de alguma forma.

Depois, o aparecimento da bailarina na discoteca altera claramente o equilíbrio do filme. Para mim, foi importante no sentido em que esta aparição teve a sensação que, por vezes, podemos ter de ver uma pessoa a dizer, ok, esta pessoa diz-me alguma coisa, mas não consigo explicar. Como uma espécie de epifania em que sabemos que esta pessoa ressoa, de alguma forma, dentro de nós, mas não conseguimos explicá-la imediatamente.

“Disco Boy” segue uma estrutura sensorial enriquecida pela música. A banda sonora foi composta antes das filmagens, pelo DJ francês Vitalic. Durante a preparação do filme, o cineasta italiano deu a ouvir a música aos atores, para entrarem no espírito da história:

Quando estava a escrever o filme, lembrei-me do compositor de música eletrónica Vitalic, que é uma espécie de estrela, e o meu sonho era trabalhar com ele. Falámos durante muito tempo sobre quais as referências atmosféricas para mim. Estava à procura de algo, de uma melancolia, de um lirismo e, ao mesmo tempo, tinha um sentimento de opressão.

Depois, recebi três ou quatro temas, uns meses antes de começar a filmar o “Disco Boy” e eram perfeitos. Era exatamente a música que tinha imaginado.

Foi muito bom, porque esses temas chegaram antes da rodagem do filme. Dei-os a ouvir aos atores, à diretora de fotografia, à cenógrafa, para que, quando fizesse o filme, estivessem já imbuídos dessa música.

Tocava-a no plateau e, de alguma forma, o filme foi-se realizando ao ritmo da música.

O realizador filmou as cenas de combate com câmaras térmicas, para não parecerem tão violentas:

Por um lado, não podia fazer uma abstração absoluta da violência, não podia deixar de mostrar a violência, porque, para além da guerra, há este choque na forma do amor entre as personagens, Alexei e Jomo.

Optei por apresentar este momento com a câmara térmica. Assim, tenho um som que talvez seja forte, mas a imagem já nos diz outra coisa. Torna esta cena física, de luta, quase como numa dança, quase torna a cena de luta num encontro de corpos e de cores. Faz com que o filme entre numa dimensão mais psicadélica, mais xamânica, que é a segunda parte do filme.

Em “Disco Boy”, Giacomo Abbruzzese contou com a colaboração da realizadora luso-francesa Christelle Alves Meira:

Tive vários colaboradores no guião que me ajudaram na fase de escrita e me deram feedback, e a Christelle foi a mais valiosa de todos. É uma amiga muito querida, conheço-a desde que fizemos curtas-metragens juntos. Conhecemo-nos nos festivais, tornamo-nos amigos muito próximos.

Quando comecei a trabalhar no “Disco Boy”, falei com ela. Como escrevo os meus próprios filmes, é essencial ter interlocutores, falar com alguém em quem se confia, que possa ler o guião e dar-nos bons conselhos. Não estou a dizer isto por ela ser portuguesa, mas foi realmente a pessoa que mais me ajudou.

Composição entre a guerra e a dança, “Disco Boy” recebeu o Urso de Prata para a melhor contribuição artística no Festival de Berlim e foi o filme vencedor da Festa do Cinema Italiano em Portugal.

Chega esta semana aos cinemas portugueses.

  • Margarida Vaz
  • 27 Out 2024 14:31

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