16 Jan 2025

A afirmação do cinema brasileiro no panorama internacional passou pelo Festival de Veneza com o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, premiado pelo melhor argumento, e pela protagonista, Fernanda Torres, entretanto premiada com o Globo de Ouro para melhor atriz dramática.

A partir de um livro escrito por Marcelo Rubens Paiva, o filme conta a história do engenheiro e político Rubens Paiva que, na década de 70, foi levado pela polícia da ditadura e de como a esposa, Eunice Paiva, e os cinco filhos vivem décadas à espera da confirmação da sua morte.

Em entrevista ao CINEMAX RTP, atriz e realizador falam de como foi descobrir esta família.

Para Fernanda Torres, conhecer e interpretar o papel de Eunice foi uma responsabilidade e uma honra:

Foi um longo processo. Desde que o Walter me chamou eu senti a responsabilidade de fazer um retrato fiel e honrado dessa mulher, uma mulher tão inteligente, uma mulher que se negou a ser uma vítima, porque ela entendeu que se ela se transformasse numa vítima – e havia razões para isso – de certa forma a ditadura teria vencido sobre ela.

Uma mulher que entendeu que o que se abateu sobre ela, que foi a tortura e morte do marido e nem sequer o direito de enterrar aquele corpo, não era diferente do que acontecia todos os dias contra periféricos, indígenas.

Uma mulher que se reinventou e se fundou depois de uma tragédia como advogada, participou da Constituição Brasileira, defendeu as terras indígenas, era uma mulher tão gigante que eu tive a honra de fazê-la e procuramos fazê-la de forma fiel, como ela esteve no mundo, sem melodrama e de uma forma contundente e real.

Fernanda Torres: “Houve no Brasil uma espécie de concordância de que um país que assassina um pai de família como aquele, não é um país saudável de se viver.”

Desenvolvido durante vários anos, “Ainda Estou Aqui” não chegou às salas no período em que Jair Bolsonaro foi presidente. Entretanto, a realidade política brasileira mudou com o regresso de Lula da Silva. Do ponto de vista da tomada de consciência, o realizador Walter Salles acha que o filme surge no tempo certo:

O livro do Marcelo é polissémico, ele abre a porta para o entendimento das personagens do filme, mas sobretudo de Eunice Paiva.  Eu conheci essa família quando era adolescente, mas não tinha, na verdade, a compreensão de todas as camadas daquilo que tinha acontecido quando a família se mudou do Rio de Janeiro e foi para São Paulo.

O que o Marcelo nos oferece é uma reconstrução da memória familiar e, ao mesmo tempo, uma reconstrução da memória do Brasil naquele período, naqueles 30 anos. Por isso, o projeto do roteiro demora anos por causa da dificuldade de contar 30 anos da história brasileira em duas horas de filme.

Nós começámos o projeto pensando que estaríamos oferecendo um reflexo possível do passado. E, à medida em que o filme foi se esticando no tempo, o projeto do filme foi-se esticando, o Brasil foi mudando e a gente teve a clara percepção de que estava fazendo um filme sobre o nosso presente. E essa confluência do passado com o presente é que, na verdade, nos deu força criativa.

Acho que o filme foi feito com essa percepção de que nós estávamos falando sobre quem nós éramos, mas também sobre quem nós estávamos sendo naquele momento.

Eu acho que o filme veio na hora certa. Inclusive, o resultado, a vinda do público às salas de cinema do Brasil para viver uma experiência coletiva no cinema, para se reencontrar com a história do Brasil, acho que é um bom termómetro disso, uma prova de que o filme chegou quando tinha de chegar mesmo.

Fernanda Torres concorda e lembra que a chegada do filme aos ecrãs brasileiros coincidiu com um facto político importante:

A gente lançou o filme junto com a descoberta de que houve de fato a tentativa de um golpe militar no Brasil com um planejamento que entrou em curso do assassinato do presidente, do vice-presidente e do juiz da Suprema Corte Eleitoral. Então, eu acho que o filme veio em hora certa.

Na conferência de imprensa que apresentou o filme no Festival de Veneza, o realizador Walter Salles referiu países onde há claramente um retrocesso de democracia. Agora, no início de 2025, volta a refletir sobre esta fragilidade democrática evidente:

A fragilidade da democracia, infelizmente, é perceptível em latitudes muito diferentes. E quando a extrema direita chega ao poder, e isso está acontecendo em diversos países do mundo, as duas primeiras instituições atacadas, a primeira delas é a educação pública, e a segunda é a cultura, é tudo aquilo que gera uma memória.

Quando você olha esse recrudescimento da direita, ela vem com uma tentativa justamente de desestabilização e de apagamento da memória coletiva. E o cinema, assim como a literatura, como a música, vem em sentido contrário, é aquilo que talvez forme memória.

Então, diria que o filme diz respeito ao nosso presente em diversos cantos do mundo. Aliás, a repercussão do filme, a maneira como está sendo abraçado, reflete essa questão.

Walter Salles: “a tentativa de boicote da extrema-direita não foi para lugar nenhum.”

A atriz Fernanda Torres acredita que a atração do público pelo filme parte do facto de ter por base uma família com quem se podem identificar:

Como trata de uma família, cria uma empatia muito grande dos jovens com os jovens da família, de pais com os pais da família, é como se a família estivesse acima da divisão política, da ideologia binária.

Houve no Brasil uma espécie de concordância de que um país que assassina um pai de família como aquele, não é um país saudável de se viver para ninguém, não importa o credo, a religião, a crença política. Então, eu acho também que é um filme político, mas um filme político calcado na questão familiar, que é tão antiga quanto a caverna, quanto os gregos. É uma tragédia grega, moderna.

Quando da estreia de “Ainda Estou Aqui”, a extrema-direita tentou lançar uma campanha de ódio. Walter Salles acredita que o filme vai muito além das percepções populistas e radicais que têm envolvido a sociedade brasileira:

Olha, eu acho que o filme gerou uma tentativa de boicote da extrema-direita que não foi para lugar nenhum.

Estamos chegando a 3 milhões e meio de espectadores no Brasil e, sobretudo, pessoas de gerações muito diferentes. De certa forma, para além das bolhas que se criaram, para além da percepção binária do mundo que tem vingado no Brasil. Então, digamos, esse desamor que você poderia estar sentindo, que a gente poderia estar sentindo, eu acho que ele acabou não vingando.

Eu acho que é um filme sobre uma família que se definiu pelo afeto, que se reinventou pelo afeto e acho que esse é, na verdade, o sentimento que prevaleceu na maneira com que o filme foi abraçado pelo público.

Em “Ainda Estou Aqui”, Fernanda Torres partilha a personagem de Eunice com a mãe, Fernanda Montenegro. A atriz fala sobre como foi essa experiência:

Eu e mamãe a gente funciona separado, mas nós também temos uma entidade chamada “as Fernandas”. A gente já fez filmes, peças, programas de televisão.

Nesse caso é uma honra ter partilhado essa personagem com a minha mãe, uma mulher que lembra muito a minha mãe nos anos 70, sobre uma casa que lembra muito a minha casa nos anos 70.

Eu poderia ser uma daquelas crianças que está correndo ali e eu acho que esse filme tem várias simbologias nele. Uma é a resistência da Eunice que deu no Marcelo Paiva, que escreveu a história dela. Outra é a da minha mãe que deu em mim e hoje as duas estão nesse filme pelas mãos do Walter Salles.

Então, assim, eu gosto do fato das Fernandas estarem nesse filme para falar da história dos Paiva.

“Ainda Estou Aqui”, um filme que sublinha uma certa ideia de resistência e revive o passado à procura de pontos em comum com o nosso tempo, estreia esta semana nos cinemas portugueses.

  • tiago alves
  • 16 Jan 2025 16:59

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