

ON FALLING: a dor, o silêncio e o trabalho
A realizadora portuguesa Laura Carreira estreia-se na longa-metragem com um olhar sóbrio e humano sobre a precariedade laboral.
Está em exibição nos cinemas “On Falling”, a primeira longa-metragem de ficção de Laura Carreira, uma coprodução entre Portugal e o Reino Unido, rodada na Escócia com atores e não-atores.
Uma narrativa, onde Laura Carreira aborda um tema ao qual dedicou atenção em curtas-metragens realizadas anteriormente, também na Escócia, “Red Hill” e “The Shift”, filmes onde o tema é o trabalho.
“On Falling” foi premiado no Festival de Londres, também em San Sebastian, onde recebeu o Prémio de Melhor Realização, prémio relevante para uma primeira obra.
Laura, vives em Edimburgo há 12 anos. A tua experiência pessoal no Reino Unido que inspira a narrativa deste filme?
Sim, acho que é uma combinação do meu interesse em explorar o tema do trabalho no cinema. Já na minha última curta tinha examinado o trabalho precário e decidi continuar esse percurso.
A ideia inicial do filme começou muito por eu descobrir o trabalho de ‘picker’, que é o trabalho que a Aurora faz neste grande armazém em que recolhe objetos que são pedidos online e tem um scanner que lhe diz ao segundo quanto tempo tem para chegar ao próximo objeto.
Para mim, acho estranho que este trabalho exista nesta forma. As grandes companhias gabam-se da eficácia e falam das inovações tecnológicas, mas quando se vai a ver, é uma pessoa que está por trás, a correr atrás do objeto.
Isso chocou-me e, logo de início, achei que haveria aqui um filme. Depois, quando comecei a falar com outros ‘pickers’, apercebi-me de que vários eram trabalhadores imigrantes. Acho que foi aí que decidi tornar a Aurora uma imigrante portuguesa porque sabia que podia trazer a minha experiência dos primeiros anos na Escócia.

A escolha de uma atriz portuguesa, Joana Santos, foi muito determinada pelo teu interesse em colocares alguém que refletisse a tua vivência, um imigrante de um país europeu, no Reino Unido.
Sim, em todos os filmes que escrevo é muito difícil evitar incluir a minha própria vida. Portanto, acho que fez sentido. E depois, claro, descobrir a Joana que é uma atriz fenomenal e trouxe muito para o filme. Tem uma experiência muito grande e na primeira longa queria trabalhar com alguém que pudesse ser uma boa companheira de viagem, algo que a Joana foi.
Em “Listen”, a Ana Rocha de Sousa abordou as dificuldades de imigrantes no Reino Unido olhando para um problema social envolvendo uma família portuguesa. Marco Martins filmou o trabalho de migrantes da Europa continental, nomeadamente portugueses, num filme duríssimo, o “Great Yarmouth”. O teu filme é diferente, a história que propões e o modo como a contas são totalmente diferentes, mas encontramos pontos comuns com outros filmes recentes do cinema português. Esta personagem, a Aurora reflete uma multidão de pessoas que trabalham nestas condições?
Sim, acho que muita gente se vai rever neste filme. Fala das dificuldades financeiras de chegar ao fim do mês, de trabalhar muito e ter poucas recompensas e do dano que o trabalho traz para a vida pessoal. A Aurora vive nas margens e as margens que tem são as que usa para descansar e, portanto, é toda uma forma de viver que limita a possibilidade do que a vida poderia ser.
Um terço da minha geração portuguesa vive lá fora e, portanto, acho que esta experiência de imigração, de ir lá para fora procurar uma vida melhor é algo em que muita gente se vai se rever.
Sentes que ao abordares esta problemática numa perspetiva que é pessoal mas muito ampla, estás também a iluminar a problemática dessa geração?
Sim, a minha geração cresceu de crise para crise. A ideia de trabalho para a vida nunca foi algo que tivéssemos garantido. Portanto, acho que é uma geração que cresceu com muita instabilidade e isso levou-nos a ver a nossa relação com o trabalho de forma diferente.
…são companhias que estão a receber lucros gigantes, são das pessoas mais ricas do mundo, e trabalhadores que estão a receber salários que não os deixam chegar ao fim do mês com as contas pagas. Acho isto uma injustiça completamente injustificável.
Exato, esse é um bom ponto. O que está a mudar, Laura?
Lá está, quando não podemos ter a ideia de uma carreira para a vida começamos a desligar-nos do trabalho a nível pessoal e creio que isso pode ser positivo, não nos identificarmos completamente com o trabalho que temos para podermos explorar outras versões de nós que não sejam só trabalhadores e consumidores.
A minha geração já está a exigir isso, trabalho digno, com significado, que tenha um propósito e que afete o mundo. Essa é uma mudança muito grande porque não é um discurso que encontre na geração dos meus pais, ou em gerações mais velhas.
E estamos a falar de um trabalho monótono, solitário, repetitivo, desumanizado e mal pago. Neste trabalho acho que se sente essa injustiça de forma muito imediata porque são companhias que estão a receber lucros gigantes, são das pessoas mais ricas do mundo, e trabalhadores que estão a receber salários que não os deixam chegar ao fim do mês com as contas pagas. Acho isto uma injustiça completamente injustificável. Obviamente é um trabalho muito difícil, mas este filme fala também muito do custo existencial de se fazerem estes trabalhos.
Em diferentes fases da vida podemos encontrar-nos em situações em que temos de fazer trabalhos monótonos, repetitivos, que não nos dizem muito e que temos de os fazer porque precisamos de trabalhar e precisamos do dinheiro.

Sentes que a tua geração está a conseguir encontrar respostas? Quais são?
É difícil. Eu acho que as respostas e as soluções existem. Os salários podem ser aumentados. Aumentar salários, trabalhar menos. Isto são respostas muito imediatas. Há 100 anos, os economistas achavam que agora podíamos estar a trabalhar 15 horas por semana e a verdade é que com a produtividade que temos já podíamos. Porquê é que não estamos? Isto são questões que vamos ter de começar a levantar. Mas também passa muito por exigirmos mais. Os nossos padrões estão muito, muito baixos.
Quando pensamos em vitórias históricas, os fins de semana foram conquistados coletivamente por sindicatos, as férias foram conquistadas coletivamente também, acho que temos de exigir mais. Este progresso não parou agora e também passa muito por conseguirmos ter alguma perspetiva com o trabalho porque faz parte do ar que respiramos. É muito difícil olhar para o trabalho com alguma objetividade e espero que os meus filmes contribuam para essa perspectiva.
…estamos a ser divididos e culpados e é importante continuarmos a pensar no que queremos a nível de natureza humana.
O filme está a fazer um percurso bastante interessante nos festivais, está em exibição no Reino Unido, estreia agora em Portugal, também em Espanha e faz sentido que alcance essa visibilidade mais ampla em Espanha, tendo em conta que o percurso internacional começou justamente no Festival de San Sebastián. Como tem sido a tua partilha do filme com públicos diferentes?
Tem sido muito gratificante. Quando estava a escrever o filme tinha dúvidas sobre se as pessoas iam entender a Aurora.
A verdade é que as pessoas estão-se a rever e algumas mensagens que tenho recebido ao longo dos últimos meses têm sido muito emocionantes, de pessoas que falam de como estas mágoas e tristezas com que vivem são difíceis e que o filme conseguiu pôr o dedo na ferida. Que conseguiram ver parte dos seus sentimentos representados na Aurora e isso é muito bonito porque a Aurora fala muito pouco, não pede ajuda, não diz a situação que está a passar.
Há tanta gente com estas tristezas que é importante percebermos que são coletivas e se calhar temos de olhar para fora e não para dentro para as resolvermos. Essa é outra dimensão da vivência, do trabalho e das dificuldades financeiras que tem. A Aurora não socializa, sente-se alienada, vive num espaço dividido com outros imigrantes e isso reflete obviamente dimensões que vamos vendo retratadas em Portugal.

É algo que também queres valorizar. Algo também está errado no trabalho que fazemos, não é?
Sim, não temos tempo, não é? Algo também importante no filme era mostrar as pessoas à volta da Aurora. Há cenas em que a Aurora precisa de ajuda e as pessoas estão lá. Era importante ter isto no filme porque estamos a viver um tempo em que estamos a ser divididos e culpados e é importante continuarmos a pensar no que queremos a nível de natureza humana e de quem somos quando nos dizem que estamos em competição uns contra os outros e que é cada pessoa por si. Não é, a nossa natureza humana é muito mais do que isso e também queria trazer este elemento para o filme.
Isso deve muito aos filmes de Ken Loach, cineasta maior do realismo britânico, que te inspira. Aliás, “On Falling” é produzido pela Sixteen Films, a produtora fundada pelo cineasta. Leva-te a cuidar dessa dimensão porque o realismo social de Ken Loach é sempre humanista e também reconfortante?
Sim, os filmes dele marcaram-me. Lembro-me da primeira vez que vi o “Eu, Daniel Blake”. Imediatamente percebi que não era um filme que fosse esquecer facilmente. Os filmes do Ken Loach e dos irmãos Dardenne e outros mais marcaram-me porque trouxeram estas representações para o ecrã e foi um grande privilégio poder trabalhar com eles na minha primeira longa-metragem.
E também na próxima?
Também na próxima, sim. Percebemos que temos semelhanças na forma como vemos o mundo e como queremos fazer cinema. Foi uma colaboração que resultou muito bem e queremos fazer mais filmes.
Isso dá-te maior responsabilidade, considerando que estás a filmar no contexto de uma companhia que foi fundada pelo Ken Loach?
Conseguimos fazer um filme com o qual estamos muito contentes e é um privilégio gigante poder continuar a trabalhar nesta tradição do cinema que me diz muito de olhar para os problemas do dia de hoje. Acho que esse tipo de cinema nunca vai parar e se conseguir com os meus filmes dar a minha contribuição para esta tradição é um grande privilégio.
Será um cinema que se insere na grande tradição do realismo britânico, ou poderás criar algo de novo no realismo português?
Estou a começar. Vou querer sempre explorar os meus interesses. Creio é que é muito difícil evitar a realidade em que vivemos. As coisas não estão a parecer positivas no momento, por isso vão haver muito mais filmes para fazer. Por mais que queira evitar a forma como vivemos e olhar para a realidade como ela é – e, hoje em dia, passa muito pelo trabalho, não há forma de evitar.
Em alguns filmes que já estou a pensar se calhar esses temas vão ser menos importantes. Por exemplo, um deles é uma personagem que está de férias e de visita a Portugasl. Foi a minha única forma de resolver a situação.
Já te sentes mais escocesa?
Não, vai ser sempre um problema. Acho que vou sempre ficar com as duas identidades.
Em Portugal sentia o mesmo porque nasci no Porto, mas cresci em Espinho, depois fui para Lisboa, ou seja, já em Portugal tinha um problema de identidade e esse problema vai-me seguir a vida toda, não há problema.
A terminar, gostaria de perceber se a próxima longa-metragem está já bastante desenvolvida e se sentes, terminada a primeira longa-metragem, que consegues trabalhar de forma mais tranquila no cinema.
O “On Falling” tem tido um percurso muito longo e tenho tentado escrever o próximo nos poucos espaços livres que encontro entre distribuir e promover o filme. Isso tem sido possível, mas a indústria do cinema, às vezes, é muito precária. Temos de viver com alguma instabilidade no sentido em que não sabemos se o próximo filme vai avançar, quando vai avançar. É algo que só agora estou a experimentar.
Até fazer o “On Falling” tinha outros trabalhos para me aguentar financeiramente, porque nunca foi possível viver só do cinema. Agora, vou experimentar viver só do cinema, mas é uma experiência, não sei quanto tempo vou conseguir. Estou a fazer o melhor que posso no sentido de me manter na indústria, mas é difícil se não tens uma conta bancária recheada. Vamos ver quanto tempo me aguento.