

“A Voz de Hind Rajab”: os apelos desesperados de uma menina em Gaza abalam Veneza
A gravação original de uma criança de 5 anos ferida num carro é a âncora do filme realizado pela tunisina Kaouther Ben Hania.
Os últimos apelos angustiados de uma menina palestiniana de cinco anos presa num carro sob fogo israelita são recontados em “A Voz de Hind Rajab”, filme que estreou no Festival de Cinema de Veneza esta quarta-feira.
“A história de Hind carrega o peso de todo um povo”, disse aos jornalistas uma das atrizes, Saja Kilani, na declaração que leu em nome de todo o elenco e da equipa.
O drama centra-se nos operadores telefónicos do Crescente Vermelho Palestiniano que tentaram durante horas tranquilizar Hind Rajab, que implorava para ser resgatada do carro, onde a tia, o tio e três primos já estavam mortos.
“Estou tão assustada, por favor, venham”, diz a menina, com as gravações originais das suas chamadas cada vez mais desesperadas a serem utilizadas com grande efeito ao longo do filme.
“A verdadeira questão é: como deixámos uma criança implorar pela vida? Ninguém pode viver em paz enquanto uma criança for forçada a implorar pela sua sobrevivência… Deixem que a voz de Hind Rajab ecoe em todo o mundo”, acrescentou Kilani.
Após três horas de espera, o Crescente Vermelho recebeu finalmente luz verde de Israel para enviar uma ambulância e tentar salvar Hind. Mas o contacto com a menina e com os próprios socorristas foi cortado logo após a chegada da ambulância ao local.
Dias depois, o corpo da criança foi encontrado no carro, junto dos seus familiares. Os restos mortais dos dois trabalhadores da ambulância também foram recuperados do seu veículo bombardeado.
Inicialmente, as Forças de Defesa de Israel (FDI) afirmaram que as suas tropas não tinham estado ao alcance de tiro do carro. Investigações independentes questionaram esta afirmação e um relatório posterior da ONU afirmou que as FDI tinham destruído o carro de Rajab e depois matado os dois socorristas enviados para a salvar.
Questionada esta semana sobre o caso da morte de Hind Rajab, as forças armadas israelitas dizem que o incidente, ocorrido a 29 de janeiro de 2024, continua a ser analisado e recusou fazer mais comentários.
Ovação de pé na sala de imprensa
O filme mereceu um raro aplauso de pé no início da sessão de imprensa que antecedeu a estreia.
“A Voz de Hind Rajab” atraiu também alguns nomes de topo de Hollywood como produtores executivos, o que lhe confere um peso acrescido na indústria, incluindo Brad Pitt, Joaquin Phoenix e Rooney Mara.
A realizadora tunisina Kaouther Ben Hania, que também escreveu o argumento, afirma que a voz de Hind transcende uma única tragédia.
“Quando ouvi pela primeira vez a voz de Hind, havia algo mais do que a sua voz. Era a própria voz de Gaza a pedir ajuda… Foi a raiva e a impotência que deram origem a este filme”, declarou aos jornalistas.
As FDI invadiram a Faixa de Gaza após militantes do Hamas terem atacado Israel em 7 de outubro de 2023, matando 1 200 pessoas e fazendo 251 reféns. Mais de 63 mil habitantes de Gaza morreram desde a invasão israelita, segundo as autoridades sanitárias de Gaza.
“A narrativa em todo o mundo é que as pessoas que morrem em Gaza são danos colaterais. Penso que isto é desumanizador e por isso que o cinema e a arte são importantes, para dar a estas pessoas uma voz e um rosto. Estamos a dizer basta, basta deste genocídio”, afirmou Ben Hania.
A maior associação académica do mundo de estudiosos do genocídio anunciou esta semana que tinha aprovado uma resolução em que afirmava que estavam reunidos os critérios legais para estabelecer que Israel está a cometer genocídio em Gaza, algo que Israel nega.
Os atores que interpretam os socorristas do Crescente Vermelho disseram na conferência de imprensa que só escutaram as gravações da voz de Rajab quando estavam nas filmagens, o que tornou a rodagem um processo extremamente emocional.
“Houve duas alturas em que não consegui continuar a filmar. Tive um ataque de pânico”, confessou o ator palestiniano Motaz Malhees.