20 Mai 2023 14:38
Auschwitz, visto do outro lado do muro: o horror do Holocausto reside no facto de ter sido perpetrado “não por monstros, mas por pessoas como todas as outras”, considera Jonathan Glazer, que apresentou “The Zone of Interest” em Cannes, na sexta-feira.
O realizador britânico regressa com a sua quarta longa-metragem, um retrato arrepiante do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, e da sua família, que desfruta da vida numa casa junto ao campo de extermínio.
Esta personagem – que dirigiu de facto o campo durante mais de três anos e tomou a iniciativa de expandir a respectiva capacidade de matar – tenta no filme, juntamente com a sua mulher Hedwig, apelidada de “a rainha de Auschwitz”, construir uma vida de sonho nesta casa, com um jardim florido e até uma piscina, não muito longe de um rio onde por vezes brincam com os filhos.
Ao contrário de outros filmes sobre a Shoah que se centram em actos heróicos ou na sobrevivência nos campos de concentração, este filme centra-se em cenas da vida quotidiana que tornam a realidade do outro lado do muro ainda mais aterradora: o som dos tiros, a chegada dos comboios da morte, os gritos dos prisioneiros.
Tudo é adivinhado, nada é mostrado, excepto o fumo das câmaras de gás.
“Foi tudo muito bem calibrado para que tenhamos a sensação de que essa máquina monstruosa existe”, disse Jonathan Glazer à AFP.
Gente comum
Como podem as gentes permanecer tão impassíveis perante tal horror?
Inspirado no romance homónimo do seu compatriota Martin Amis e após dois anos de investigação, Jonathan Glazer apercebeu-se de que as pessoas por detrás do extermínio “eram apenas um grupo de pessoas comuns, de classe média, provincianas e ambiciosas”.
Gostavam “de ter uma boa casa, um bom jardim, filhos saudáveis, ar puro”, explica o realizador, que documentou o modo de vida dos SS que governavam os campos, os seus hábitos, para “compreender” o incompreensível.
” Parece sugerir que o horror reside no facto de estas pessoas não serem monstros, mas sim pessoas como quaisquer outras. Mas como podem essas pessoas, iguais às outras, agir assim?”, pergunta.
A “zona de interesse” era o nome utilizado pelos nazis para designar a área de 40 quilómetros quadrados que rodeava o campo de concentração de Auschwitz.
O único vislumbre de humanidade surge na forma de uma rapariga polaca que sai todas as noites para levar comida aos prisioneiros. Glazer inspirou-se numa mulher de 90 anos que conheceu e que tinha feito exactamente a mesma coisa.
Jonathan Glazer, cujo filme de 2013 ” Debaixo da Pele”, sobre uma alienígena que veio à Terra para fazer desaparecer os humanos, foi elogiado pela crítica, interessou-se pelo Holocausto muito antes do romance de Martin Amis, que serviu, no entanto, de “catalisador”.
“Cresci no seio de uma família judia, estava rodeado de familiares e amigos judeus. Aprendemos sobre o assunto desde muito novos. É como um livro que se tira da prateleira com a curiosidade de uma criança… Começamos a olhar para as fotografias e pensamos: são parecidos comigo, com o meu tio, com a minha mãe. Quem são eles? Por que lhes fizeram isto?
Ainda mais assustador para Glazer é perguntar “como nos teríamos comportado no lugar deles? Até que ponto somos parecidos com essa gente?”