30 Jan 2024
Um corpo caído na neve, um casal, o filho quase cego e um cão – esta é a estrutura familiar do enredo de “Anatomia de Uma Queda”, um drama jurídico, criminal e psicológico que segue o processo em tribunal de uma mulher suspeita de ter matado o marido.
A cineasta Justine Triet, a terceira realizadora a ganhar uma Palma de Ouro no Festival de Cannes, parte de um julgamento para dissecar a relação de um casal.
“A ideia era entrar na mente de uma mulher e usar o filme de um julgamento para colocar essa mulher na posição, não de nos contar a sua história, mas de se justificar perante as acusações dos outros. Por outras palavras, são os outros que falam constantemente por ela, dizem que ela é isto ou aquilo; e ela diz que não: ‘eu não sou essa mulher’. Portanto, no final, é usar o filme de género, o filme de um julgamento, para contar a história da vida desta mulher, do casal e da família.”
Justine Triet, vencedora da distinção de melhor realizadora nos prémios do cinema europeu, idealiza personagens complexas. Em “Anatomia de uma Queda”, a protagonista é uma mulher forte e livre.
Justine Triet: “… o filme é muito livre, no que diz respeito à palavra…“
“É verdade que, quer sejam masculinas ou femininas, considero sempre as personagens complexas. Não digo a mim própria: ‘esta é uma mulher que vai ser forte ou algo do género’. A verdade é que ela é alguém que parece estar numa posição bastante dominante. Mas tal como todos os seres humanos, ela é uma pessoa complexa, com fraquezas e por aí adiante. Ela é julgada com mais rigor porque não é a vítima perfeita, não parece ser frágil. Leva a pensar que talvez ela possa ser manipuladora, nos tenha enganado, pois ela fala muitas línguas, escreve livros. Talvez ela possa levar a pensar outras coisas. Tem ar de ser inteligente, mas a sua inteligência pode virar-se contra ela no julgamento.”
Uma testemunha do crime pode ser o filho do casal, uma criança de 11 anos praticamente cega… e que tem um cão. A cineasta francesa Justine Triet fala de um paradoxo no filme.
“Um paradoxo do filme é que o cão vê tudo, é certamente o único que sabe e que faz a ligação entre todos, mas não consegue falar. E a criança não vê e fala. Há aqui este paradoxo. Acho que a criança encarna uma coisa muito forte que eu sinto como espetador, no quotidiano e que todos nós podemos sentir. Quando olhamos para uma notícia ou para uma situação, temos a nossa própria subjetividade e, por vezes, há lacunas. Temos de criar a nossa própria crença com base numa história, mesmo que haja lacunas. Nós não estávamos lá. Ouvimos falar disso. Tudo o que temos é um registo sonoro. Portanto, a criança é a personificação disto, por outras palavras, tal como nós, falta-lhe a perceção do que aconteceu, e, tal como nós, tem de criar a sua própria história e saber por si própria como escolher uma forma de verdade. A minha teoria é que o cão sabe, mas não pode falar.”
Sandra Hüller: “Todas as personagens são de alguma forma culpadas…”
O argumento de “Anatomia de Uma Queda”, premiado com o Globo de Ouro e o Prémio do cinema europeu, foi escrito por Justine Triet em conjunto com o marido Arthur Harari, também, cineasta. A história surgiu por acaso durante a pandemia, não foi premeditado falar de um casal.
“Digamos que mesmo quando estávamos a escrever juntos, nunca dissemos a nós próprios, somos um casal, vamos fazer um filme sobre um casal, porque no início, aconteceu de uma forma muito mais natural. Por outras palavras, foi a pandemia. Quanto ao Arthur, ele estava à espera para promover o filme dele. E eu só lhe pedi para me dar uma ajuda durante três semanas e isso transformou-se em três anos. Mas não foi premeditado, não foi.”
O julgamento em “Anatomia de Uma Queda” é um retrato do que acontece nas audiências dos tribunais franceses. Justine Triet teve a colaboração de Vincent Courcelle-Labrousse, um advogado criminalista.
“Quando tinha 25 anos, passava os dias no tribunal, nas audiências. Por isso, estava muito habituada a ser confrontada com julgamentos. Também, trabalhámos muito com um advogado criminalista, que nos ajudou a não olhar para os filmes americanos, porque não é assim que se faz em França. O filme é realmente ancorado em França. Uma das particularidades, que é bastante interessante em comparação com o resto do sistema judicial noutros países, e que eu acho muito interessante, e que não tem sido muito mostrada, é que em França há de facto algo mais desorganizado, é a forma como as pessoas falam nas audiências. Em França, não se chamam juízes, temos os presidentes do tribunal. São eles que decidem como vai ser dada a palavra. Uns querem tomar a palavra, outros são muito mais laxistas a esse respeito. No final, o discurso é muito mais anárquico. Foi isso que fizemos, o que significa que o filme é muito livre, no que diz respeito à palavra, em comparação com outros filmes.”
O filme “Anatomia de Uma Queda” está nomeado para cinco Óscares (filme, realização, atriz, argumento e montagem). A realizadora francesa Justine Triet não se deixa deslumbrar e com ironia diz que não tem onde colocar as estatuetas.
“Não tenho lareira para o colocar, isso é problemático. Outro sítio pode ser a casa de banho, o que pode não ser uma boa ideia. Não me lembro quem é que disse algo engraçado sobre isso… que o tinha colocado na casa de banho, para que as pessoas pudessem olhar para si próprias quando lá fossem e se imaginassem a receber o prémio. Receber os prémios é muito bom, é uma grande felicidade. Estou muito feliz. E espero depois conseguir fazer outro bom filme.”
Depois de ter trabalhado com Justine Triet no filme “Sibyl”, a atriz alemã Sandra Hüller interpreta a mulher suspeita e que defende a inocência em “Anatomia de Uma Queda”. No festival de Cannes reconheceu o orgulho de ter inspirado a escrita do papel.
“O facto de Justine não trabalhar com qualquer tipo de pressão é muito especial. Alguns realizadores podiam seguir-lhe o exemplo. Claro que é uma humildade quando alguém diz: ‘Escrevi isto para ti’. Para mim, é uma coisa muito técnica, porque ela escreveu e eu pensei: ‘sou alemã, posso aprender uma língua, falo um pouco de inglês e posso, também, falar francês…’ Para mim, coloco-o numa perspetiva técnica e profissional para lidar bem com a situação. Mas, claro, estou ciente da amizade e do carinho que existe entre nós, e estou muito grata por isso.”
Melhor atriz nos Prémios do Cinema Europeu, com “Anatomia de uma Queda”, Sandra Hüller aprecia “muito o facto de não ser mostrado nada em demasiado. Para mim, todas as personagens são de alguma forma culpadas, por um motivo ou por outro. A parte mais comovente para mim é quando vejo o cão que está ali e não fez nada de errado, ao contrário de toda a gente.”
Sandra Hüller está nomeada para os Óscares e os Césares, podendo ser novamente premiada, tal como sucede com o jovem ator Milo Machado Graner, luso descendente, filho de pai francês e mãe portuguesa, que interpreta o filho do casal – aos 15 anos é um forte candidato à distinção de melhor revelação masculina nos prémios César.