01 Nov 2024
À terceira passagem pelo Festival de Cannes, depois de “Florida Project” e “Red Rocket”, o realizador Sean Baker, que tem explorado uma vertente mais independente e autoral do cinema, chegou à Palma de Ouro.
“Anora” é uma mistura de drama e comédia e mantém o foco no tema que tem alimentado o cinema de Sean Baker, a desconstrução de uma certa ideia de sonho americano.
O título remete para o nome de uma jovem que trabalha como bailarina exótica em Nova Iorque, contratada por um milionário russo para passarem juntos alguns dias.
O retrato das trabalhadoras de sexo é, há muito, um interesse de Sean Baker, que, mais uma vez, quis dar visibilidade no cinema às camadas sociais silenciadas e marginalizadas:
Nesta história, o sexo é uma simples transação, um serviço que o dinheiro pode comprar, um trabalho e uma forma de alcançar o tal sonho de uma vida melhor. Procurei no filme cenas em que o sexo seja transacional e onde não seja. Isso foi algo que tentei sublinhar no filme.
Acho importante perceber o que o trabalho no sexo é hoje em dia e de que forma se aplica em sociedades modernas e capitalistas, porque é um ganha-pão, uma carreira, um emprego, que devia ser respeitado.
A ideia veio da pesquisa que fiz. Num filme anterior a este, “Starlet”, havia uma introdução a este universo.
Conheci e mantive contacto com imensas trabalhadoras de sexo. O que percebi, em primeiro lugar, é que há imensas histórias para serem contadas. Em segundo lugar, à medida que ficámos amigos e ouvia as histórias delas, percebi que havia uma intenção nos filmes que faço.
Contar histórias humanas e universais, com as quais qualquer pessoa se pode identificar a nível emocional, ajuda a acabar com o estigma que sempre existiu sobre este modo de vida.
Uma bailarina que se prostitui e um rapaz sem noção das consequências e sem limites na conta bancária, protagonizam o divertido par romântico de “Anora”.
O filme traz à memória outro par, Richard Gere e Julia Roberts, no filme Pretty Woman, um sonho de mulher que revisitou a história da Cinderela.
No filme de 1990, um empresário rendia-se aos encantos de uma prostituta a quem deu a hipótese de mudar de vida.
Sean Baker conhece o filme e a história, mas garante que “Anora” é outra coisa e propõe uma reflexão que Hollywood não está disponível para fazer:
Cresci nos anos 80 e, provavelmente, o “Pretty Woman” teve algum efeito em mim, talvez até de forma subconsciente.
Mas era importante para mim, mesmo que tenha os elementos de uma história de romântica, de comédia romântica, era importante que a história tivesse uma base próxima da realidade, que eu acho que Hollywood não iria querer abordar.
Numa espiral de festa e alienação, a prostituta e o milionário acabam por casar-se em Las Vegas. O sonho parece estar cumprido, mas é nesse momento que a família do jovem russo aparece para impedir que a união se concretize. É o momento em que o conto de fadas passa para a realidade e a história passa a ser sobre dinâmicas de poder que oscilam entre a miúda, habituada a usar o sexo como ferramenta e a família que garante o poder através da fortuna:
Desenvolvi este filme em temas em vez de assuntos. Queria explorar vários temas e um deles é o poder e as dinâmicas de poder.
Em relação a Anora, ela tem a noção de poder, de quando tem o controle, mesmo quando o mundo à sua volta desaba.
O filme passa de romance juvenil a comédia negra com rasgos de violência, protagonizados por um trio de seguranças russos, chamados para pôr ordem no jovem noivo e na sua nova companhia.
Sean Baker não perde a mão na história, mas, em vez disso, dá-lhe novos contornos, mostrando versatilidade para filmar o caos:
Acho que o humor é necessário em histórias humanas, porque faz parte das nossas vidas. Todos usamos humor para lidar com a vida. Não suporto um filme que tenta evitar o humor, porque não é real.
O desafio é tentar equilibrar. Quando estamos a contar uma história que é trágica, saber quanto humor podemos ter e quando. Isso é um processo no qual tenho de dar crédito aos atores, que me ajudaram a encontrar o equilíbrio.
O romance e a fábula transformam-se num banho de realidade quando Anora percebe que o inesperado casamento é afinal uma brincadeira, ao alcance de quem pode não medir as consequências, porque tem o poder e a capacidade de as ultrapassar.
O par romântico de Sean Baker é, afinal, uma parábola sobre as grandes assimetrias sociais:
Todos temos sonhos e aspirações. Infelizmente, há pessoas num nível económico que não controlam, mas que não devem ser julgadas por isso.
Vejam o que se passa nos Estados Unidos, e deve ser o mesmo em muitas partes do mundo em que a classe média desapareceu. Temos pessoas que sobrevivem e temos milionários. Acho impossível não querer explorar isto no cinema.
Sean Baker cria uma ficção para evidenciar a distância que separa os que sonham com uma vida melhor dos que podem ter a vida que quiserem. “Anora” é comédia, mas também uma visão realista da divisão de classes e da desajustada distribuição de riqueza.