31 Ago 2024
A realizadora portuguesa Cláudia Varejão regressa a Veneza após “Lobo e Cão” que recebeu o prémio de melhor realização na secção paralela Giornate degli Autori em 2022.
Desta vez, a curta-metragem “Kora” conta as histórias de mulheres refugiadas que vivem em Portugal, a partir das fotografias que as protagonistas trazem consigo.
Numa conversa com o CINEMAX, Cláudia Varejão falou sobre o gosto de trabalhar sozinha e da necessidade que sentiu de filmar as protagonistas num ambiente íntimo que revelasse as suas identidades.
A presença em Veneza é um regresso. O que representa este convite?
É sempre muito bom voltarmos a um sítio onde fomos felizes. O ditado diz o contrário, mas estou em desacordo. Por exemplo, hoje entrar na sala onde o “Lobo e Cão” estreou, traz tantas memórias bonitas, aconchegou também a estreia do filme, hoje. Representa, acima de tudo, saber que estou num lugar de respeito pela voz dos autores. Esta secção é, de facto, uma secção especial. É muito política e muito cinéfila ao mesmo tempo. Portanto, sinto honra.
E este é um filme que espelha este lugar também? Assumidamente?
Político? Acho que sim. É inevitável, apesar de ser um filme com muitas leituras. Tem uma leitura política, uma leitura extremamente emocional. Eu diria, acima de tudo, é um filme muito humano. Eu diria que qualquer pessoa se pode reconhecer naquele lugar. O que seria de nós se, de um momento para o outro, tivéssemos que deixar tudo o que conhecemos e começar noutro sítio, onde nada conhecemos. Portanto, acho que há essa identificação de quem possa ver o filme.
É um filme político porque fala de uma falha enorme do sistema em que todos vivemos. Este sistema aparentemente democrático que cada vez está mais em causa, e na Europa cada vez sentimos mais esta ameaça, na Europa e não só. E acho que somos todos um bocadinho responsáveis pelo terror em que muitas pessoas vivem e que o mundo é realmente muito desigual, injusto e fruto de um espírito de colonialismo.
Após ver o filme damos por nós a pensar que, mais do que as histórias das mulheres refugiadas em Portugal, houve aqui uma preocupação muito interessante em captar o gesto, algo mais íntimo que está a passar por nós. Isto estava definido?
Estava definido, havia uma ideia de forma do filme. Apesar de ser um filme que tenta aproximar-se das questões dos direitos humanos, é um filme. Portanto, há uma ideia estética, narrativa, desde o início. Queria filmar estas personagens, estas mulheres, num contexto íntimo onde os gestos revelassem, de alguma forma, a identidade que conseguem trazer.
Porque nos podem tirar de qualquer sítio do mundo. Nós podemos tirar uma planta de um vaso e levá-la para outro sítio qualquer, mas ela continua a levar as suas características, ainda que a água com que vai ser regada seja outra, a terra vai ser outra. E acho que isso se sente no filme, as pequenas coisas que cozinham, os gestos que têm, se pintam as unhas, enfim, pequenas coisas.
Portanto, o filme observa só detalhes. Eu acho que são reveladores da identidade. E depois vem o elemento da fotografia. Essa, sim, é uma ideia que já tinha há muitos anos, numa altura em que estudava fotografia, e queria fazer um projeto só sobre as fotografias que nós trazemos nas carteiras. Porque percebi que não é uma coisa tuga. É uma coisa universal. Conheci pessoas no Japão que tinham os seus filhos e a sua mãe, os avós na carteira. Uma pessoa na Roménia que também tinha este hábito. Enfim, comecei a perceber que, de facto, era uma coisa universal.
E pensei, num momento em que temos que fugir das nossas casas por causa de um contexto de guerra, ou de uma perseguição religiosa, o que levamos? A fotografia física continua a ter um lugar privilegiado nos afetos. E, portanto, formalmente o filme estrutura-se também através destas fotografias que cada uma delas traz consigo. Umas na carteira, outras impressas numa caneca. Enfim, mas a fotografia é o elo em comum.
Quem são estas mulheres? Resumindo, como se chegou a este momento?
Há uma coisa que tenho descoberto ao longo dos anos entre o documentário e a ficção é que trabalho sempre da mesma forma. Uma espécie de estrutura de produção que é sempre igual. Há um período de pré-produção onde abre um casting, seja para documentário, ou ficção. As pessoas vêm, ou eu vou à procura delas em alguns sítios, sentamos, conversamos, faço perguntas, respondem. Elas fazem perguntas, eu respondo. E depois escolhe-se, faz-se uma seleção.
Foi assim que estas cinco mulheres foram escolhidas. Através de um casting, com a ajuda de algumas associações que trabalham no apoio a pessoas refugiadas.
O que é importante na escolha das pessoas para os filmes, atores, profissionais ou não, é haver uma espécie de curiosidade de ambas as partes. Elas, apesar do momento de dor e de caos emocional em que estavam, sentiram curiosidade pela possibilidade de se fazer qualquer coisa com a história de vida de cada uma.
Estamos a falar da Ina, que tinha acabado de chegar da Ucrânia. A Norina, que tinha acabado de chegar do Afeganistão, fugida dos Talibã, que tinha perdido a família toda. Estamos a falar da Zora, que tinha fugido do Sudão, que é uma mulher trans, portanto, vinha muito, muito, muito magoada. A Margarita, que vem da Rússia, curiosamente, porque pensamos que os russos têm um pacto sagrado com as ideias do Putin e não é verdade. Ela é uma mulher lésbica que foi perseguida na Rússia pela sua orientação sexual. E, por fim, a Lana, que é uma menina síria com 14 anos e que viveu muito pouco tempo na Síria. Portanto, a sua vida foi uma vida de fuga. Esteve no Egito e veio parar a Portugal.
Portanto, elas têm em comum a fuga, um passado de trauma e, o mais difícil, têm em comum a ideia de recomeço. E a Lana fala nisso, a certa altura diz, mas para nós recomeçarmos temos que continuar. Portanto, há um passado que todas trazem, uma espécie de mochila que elas reconhecem todas.
Elas foram todas filmadas em separado e, no final, fiz um piquenique em que juntava todas e conheceram-se. E foi muito forte esse encontro, porque foi uma espécie de reunião das Nações Unidas em que cada uma também trazia as suas convicções políticas. Portanto, não houve de imediato uma harmonia. Estamos a falar de países que estavam ali em conflito. Foi muito interessante ver como elas se relacionavam umas com as outras. Não foi, desde logo, harmonioso. Mas, à medida que o tempo foi passando, começaram a perceber que havia elementos humanos que as uniam a todas e isso foi muito, muito forte.
As filmagens foram sempre nos lugares… delas?
Delas. Em casa. Sim, eu diria… Todas nas casas delas. Por quê? Porque o filme era muito íntimo. Só era possível essa intimidade estando nos sítios delas, nos quartos delas, nas cozinhas delas. E é um filme que eu diria é um bocado artesanal. Já não estou com uma equipa como vinha do “Lobo e Cão”, cheia de pessoas à volta, a ajudar, a erguer uma ideia. Era eu. A maior parte das vezes era só eu, que fazia a câmara e o som. E às vezes, a minha querida Adriana Bolito, que me acompanha sempre, fazia o som. Quando eram situações mais íntimas, ia só eu. Mas, de uma forma geral, é uma coisa mesmo, mesmo, muito íntima lá em casa.
Neste filme também resolves agarrar várias coisas, voltar a fazer várias coisas…
Fiz tudo. O que acho que acontece, depois de se fazer filmes com muita gente, é que ficamos a duvidar das nossas capacidades. Porque toda a gente vem e é responsável por um departamento e não te deixam tocar em nada. Então, eu, na verdade, quis ir aos treinos e perceber se ainda estou em forma, se sabia operar uma câmara, se sabia montar, mas já há anos que eu não montava um filme. Eu montei o filme todo, escrevi, mas isso fazia parte. Mas, enfim, acho que tive um bocadinho de controlo sobre o processo todo e apetecia-me estar sozinha a fazer… Porque o filme também tem essa dimensão. Também é possível fazer um filme numa escala mais pequenina e ele ter o mesmo impacto depois diante do público.
E qual é o saldo? Estás em forma?
Eu acho que estou em forma.
Vais outra vez para as longas-metragens?
Sim, estou a trabalhar num novo filme.
Já podes dizer alguma coisa?
Sim, tenho umas pistas. É um filme sobre imigração, mas imigração portuguesa em França. Imigração hoje, contemporânea. Quem são os portugueses que estão a recomeçar as suas vidas em França? Uma nova geração que acaba por se relacionar com uma geração mais antiga. E agora também é impossível… Nós estamos num mundo que é impossível fecharmo-nos em nacionalidades. Imigrar é também relacionar-nos com as outras identidades culturais. É um filme sobre imigração também num sentido mais lato.