23 Mai 2022 11:24
Uma aldeia da Transilvânia serve de laboratório explosivo para o populismo: o cineasta romeno Cristian Mungiu, em competição em Cannes, espera abrir os olhos dos europeus para este mal que os está a corroer com o seu filme "R.M.N.".
"Espero que as pessoas compreendam que estou a falar delas", disse à AFP o realizador, que concorre a uma segunda Palma de Ouro 15 anos após "4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias", filme de grande impacto sobre os direitos ao aborto.
O título, "R.M.N.", refere-se à sigla romena de ressonância magnética: nela, Mungiu sonda o vírus do populismo, um mal que metástaseou na aldeia retratada no filme, ainda mergulhada na tradição, no limite da Europa.
"Espero que (o público) não escape facilmente às suas responsabilidades, que não diga a si próprio que isto está a ter lugar num país remoto e selvagem. Receio que não seja esse o caso", continuou o realizador, que regressa à Croisette seis anos após ter ganho o prémio de melhor realizador com "Baccalauréat", um filme sobre corrupção endémica.
A acção tem lugar alguns dias antes do Natal numa aldeia da Transilvânia, um microcosmo onde comunidades têm vivido lado a lado durante séculos: fala-se lá romeno, húngaro e alemão, testemunho de uma longa e atormentada história.
Os ciganos desapareceram da cidade, afastados pelos habitantes e pela força do preconceito. Mas surgiram novos "malditos da terra", três cingaleses trazidos para trabalhar na padaria local, após os romenos terem pardito para alugar a sua força de trabalho no ocidente.
Num cenário de precariedade, preconceito e tradição, os conflitos entre comunidades vão gradualmente ressurgir, ameaçando arruinar a paz da pequena comunidade.
Nada de racional
"Através de pequenos acontecimentos, em pequenas aldeias, tento falar sobre a natureza humana e o estado do mundo actual, e a sensação que temos de que as coisas não vão na direcção certa", explica o director, que diz "não poder ser optimista" em relação ao futuro.
"A natureza humana não muda assim… São necessárias apenas 24 horas para identificar um inimigo (…) e desencadear os instintos animais que estão dentro de nós. Pessoas que são vizinhas são capazes de amanhã violar, torturar e matar", continuou ele.
O momento mais corajoso do filme é um plano de 15 minutos na câmara municipal, uma reunião pública onde o destino dos trabalhadores cingaleses será decidido. Cerca de vinte pessoas irão falar, competindo entre si em explosões de ódio e preconceito, enquanto os seus adversários, que tentam pregar a tolerância, são incapazes de se fazer ouvir, por vezes enredados nas suas contradições. É como um concentrado dos debates que agitam a Europa.
Um cenário que lembra de forma impressionante outro filme romeno aclamado, "Bad Luck and Looning Porn", que ganhou o Urso de Ouro de Radu Jude em Berlim em 2020, e que também aborda as questões do populismo, e a dificuldade de derrotar o preconceito.
"O politicamente correcto não muda as crenças das pessoas, apenas as impede de as expressar", disse Cristian Mungiu. "Nos discursos (populistas), não há nada de racional. É uma mistura de poucos factos com muita propaganda.
"Não há necessidade de argumentos para acreditar. Acredita-se no que se acredita e é muito difícil mudar isso", continua. O filme pode fazer alguma coisa a esse respeito? "Não tenho uma solução e não me cabe a mim encontrar uma".